A capitã de corveta Luciana Mendes não integra a Força Tarefa Internacional 151, responsável pelo combate à pirataria no Mar Vermelho — na região do Chifre da África —, por acaso. Ela queria fazer parte desse grupo de militares, que reúne representantes das marinhas de 41 nações e cuja incumbência é garantir que os navios que por ali transitam não sejam atacados por grupos armados, que visam as cargas que são transportadas. Luciana segue os passos da mãe, a almirante Dalva Mendes, primeira mulher a tornar-se oficial-general. Segundo a capitã, o combate à pirataria em alto mar é complexo porque é preciso seguir não só regras internacionais, mas considerar, também, o ordenamento jurídico dos países envolvidos. A seguir, os principais trechos da entrevista.
A senhora está no Oriente Médio. O que a Marinha brasileira faz aí?
Ficamos no Bahrein, dentro de uma base americana, integrando a Força Marítima Combinada, que é uma coalizão multinacional de 41 Estados. O Brasil é um desses representantes e, desde janeiro, assumimos o comando da Força Tarefa 151, que tem como atribuição a repressão à pirataria e a segurança da navegação por aqui.
Essa é a região dos piratas da Somália?
Exatamente. Infelizmente, a gente tem essa situação na Somália, de um desgaste econômico muito grande. A ausência de Estado acaba favorecendo a pirataria.
Como é ser uma das poucas mulheres na força tarefa?
É com muito orgulho que falo que sou a primeira mulher na Força Tarefa 151 e representando o Brasil. Na nossa terceira participação, é a primeira vez que a gente tem uma representante feminina. Realmente foi um ato de coragem. Me entreguei, me esforcei, me dediquei para estar aqui. Quis enfrentar esse desafio, de atuar contra a pirataria. Foi algo que busquei, tive o reconhecimento da Marinha e hoje estou aqui.
A senhora é de uma família de mulheres que superaram barreiras, certo?
Minha mãe é a almirante Dalva, a primeira mulher a ser oficial-general e fez parte da primeira turma de mulheres da Marinha. Em 1981, foi a primeira turma e, como consequência do esforço, do trabalho e da carreira, foi promovida a oficial-general.
Você segue os passos da mãe. Mas, e a falta que sentia dela?
Minha mãe sempre deixou um recado em casa: de que a gente deve fazer do nosso trabalho não apenas um meio de vida, mas algo que realmente faça sentido. Algo que a gente sente orgulho, que tenha vontade de estar ali todos os dias. Esse sempre foi o exemplo que nos passou, para mim e meu irmão, de sempre tentar fazer um bom trabalho. Ela sempre nos incentivou a estar em situações mais desafiadoras, em que a gente pudesse conquistar. Sempre tive a percepção de que posso conquistar meu espaço e estar onde quisesse estar. Realmente, tenho de agradecer a ela todo o exemplo e de sempre ter essa confiança de que a gente pode alcançar qualquer função que a gente queira.
A senhora acabou de ser promovida a capitã e já enfrenta uma tarefa dessas.
Foi em 25 de dezembro ao posto de capitã de corveta, um reconhecimento da Marinha ao meu trabalho. Fico muito feliz de poder estar aqui nesse novo posto. Um reconhecimento dos meus chefes navais, um presente de Natal e de aniversário.
Como é o dia a dia na missão?
A atuação aqui é no formato de Estado-Maior. A gente tem unidades com funções específicas, de assessorar o comandante da missão. A rotina é de reuniões de coordenação, justamente para fazer essa avaliação e permitir a decisão do comando. Atuamos em uma área de operação cujo objetivo é garantir a segurança marítima, que os navios possam circular livremente. Esse é o propósito mais amplo da força combinada internacional no combate à pirataria. Há documentos internacionais que regem o que seria a pirataria, as formas de atuar, os meios que podemos usar, além das nações participantes e as limitações legais de cada um desses países. Temos que observar as legislações internacionais, especialmente a convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar, as restrições dos países e permissões legais — é nisso que atuo. Também reforçamos o treinamento dos nossos militares, fazemos exercícios, simulações de eventos reais. A gente provoca o militar para saber qual o procedimento deve adotar, para que, em uma situação real, a gente ter a resposta o mais rápido possível.
A senhora treina seus colegas?
Sim, o que fazer dentro dos navios, os equipamentos utilizados pelos piratas para a abordagem em outros navios e, também, o que fazer com os piratas em si.
E o que fazer com eles?
A gente entra na legislação dos países para ver a previsão do que pode ser feito.
Mas eles são criminosos...
Pelo princípio universal de que ninguém é culpado até que seja provado, eles vão ter de ser julgados. Um julgamento justo, de acordo com princípios gerais. Se forem condenadas, ficarão sob custódia de algum país. Algumas nações têm acordos bilaterais com os daqui da região para que façam a persecução penal — que é levar o preso a julgamento e, depois, à prisão.
O Brasil recebeu algum pirata?
Não. A regra geral é que a pirataria é um crime de jurisdição universal. Isso quer dizer qualquer país que apreende o pirata, pode julgá-lo em seu território. Como a gente não tem um meio naval (navio) na força, o Brasil não atuaria nisso. A coordenação da força-tarefa tem navios do Japão e da Coreia do Sul. Esses países são os que fazem apreensão e julgamento dos piratas.
A senhora precisa também entender as leis japonesa e coreana?
Na coalizão, tem representantes de todas as nações. A gente tem o intercâmbio de informações a como aquele país disciplina o assunto, para atuar de acordo com essa legislação.
Como seria julgado no Brasil?
Apesar de a pirataria ser um crime de jurisdição universal, nossa legislação não o prevê. Temos alguns tipos penais que poderiam ser utilizados, como o crime de roubo — responderia pelo que está previsto no nosso Código Penal, mas não especificamente por pirataria. Seria necessária uma tipificação no país.
Apesar dos esforços, o chamado Chifre da África segue inseguro…
Sim. Tivemos, desde o final do ano passado, um ressurgimento de casos de pirataria aqui. A presença da força-tarefa é justamente para dissuadir os navios piratas e fazer com que a navegação na região seja segura e tranquila. A gente atua nas áreas das quais recebemos informações de inteligência. Fazemos um planejamento de posicionamento (de navios) para fazer os piratas se sentirem desestimulados.
A senhora percebe alguma resistência por ser mulher?
Estou aqui para me desafiar. Queria estar em uma região como essa, numa missão como essa, onde teria novos conhecimentos, nova integração em termos culturais para o enriquecimento da minha carreira. Foi algo para o qual me preparei. Foi a segunda vez que tentei vir para essa missão — foi algo que quis. Enfrentei o medo, claro — não vou dizer que não tenho medo, até porque sou a única mulher na missão. Temos algumas diferenças do nosso país, mas o que me impulsionou foi o fato de ser algo difícil, diferente. Queria o desafio.
A senhora sofreu preconceito de colegas da cultura dos países do Oriente Médio por ser mulher?
A gente observa que as mulheres muçulmanas têm uma forma diferente de se vestir, cobrem a maior parte do corpo. Mas estão integradas à sociedade, participam das atividades diárias. Na força-tarefa, a gente tem o contato com muçulmanos e a relação sempre foi muito respeitosa. São reservados, falam um pouco menos com as mulheres, mas não tive nenhuma demonstração de desvalorização do meu trabalho.
O que a senhora diria para as jovens que consideram a carreira militar?
Hoje a gente tem a participação das mulheres na Marinha em todos os corpos e quadros. Não apenas nas atividades administrativas e na saúde — temos também nos meios operativos. As mulheres, hoje, podem ser do corpo da Armada, dos Fuzileiros Navais, podem estar em submarinos. Você pode estar no lugar que deseja.
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