Herdeira do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), braço de apoio à ditadura e que monitorou milhares de opositores do regime militar, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) está no centro de um escândalo de arapongagem ilegal e é investigada por uso político e indevido no governo de Jair Bolsonaro. Na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, o órgão é alvo de críticas e de suspeita de ainda estar repleta de bolsonaristas.
Com o objetivo de melhorar sua imagem, ou reduzir esse dano, a Abin optou por uma ferramenta de comunicação dos tempos atuais. Acaba de lançar o Abincast, o podcast institucional da agência, com conteúdo em áudio disponibilizado na internet. O propósito declarado, diz a apresentação da página oficial da autarquia, é de "se aproximar cada vez mais da sociedade".
O programa inaugural remete a uma crença de que a sociedade associa os agentes ao que se vê na ficção. E diz a voz dos locutores: "Abincast, tudo que você queria saber e não tinha ninguém para te contar. Os filmes e livros de espionagem trazem universo de aventura e ação que povoam o imaginário coletivo. Logo imaginamos luxo, espiões, sedução, perigos e por aí vai".
O primeiro episódio, que está no ar e dura nove minutos, trata do "extremismo violento ideologicamente motivado". Mas, apesar do tema, os ataques dos bolsonaristas em 8 de janeiro de 2023 não são citados.
Dois oficiais de inteligência — se apresentam apenas como Aline e Marcelo — são entrevistados. Pela natureza sigilosa do ofício, seus sobrenomes são evitados. Eles explicam que há grupos que têm visão de mundo próprio e que veem os outros como "inimigos a serem eliminados" — e que usam a violência para esse propósito.
Tática investigativa
Os agentes também contam que os grupos "ideologicamente motivados" usam táticas terroristas e extremistas, antes associadas ao "religiosamente motivado". Um deles explica: "O terrorismo era confundido com jihadista, islâmico, mas têm surgido grupos de supremacistas e também neonazistas. No fundo, são ameaças ao Estado", afirma.
O episódio que está no ar cita os casos dessas ações de violência em escolas.
Durante o programa, os locutores fazem uma fala elogiosa a um protocolo de prevenção contra atos extremos e violentos ideologicamente violados, instituído em 2022 — durante o governo de Jair Bolsonaro. Esse documento foi distribuído a todo Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que reúne órgãos de espionagem em todas áreas do governo.
O Abincast surge num momento de fragilidade do atual diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa. O Blog do Vicente Nunes, do Correio, adiantou que a saída do cargo do atual dirigente da agência é dada como certa no Palácio do Planalto — e que o governo identificou pelo menos 15 apoiadores de Bolsonaro em cargos de chefia da Abin nos estados.
A agência foi criada em 1999 e sancionada pelo então-presidente Fernando Henrique Cardoso depois de ser aprovada pelo Congresso. O SNI foi extinto em 1990, pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, mas parte dos servidores do antigo serviço de informação seguiram no cargo, mesmo com a redemocratização do país.
Esquema paralelo
O Supremo Tribunal Federal (STF) investiga a atuação da Abin no governo Bolsonaro, quando foi montada uma espécie de "Abin paralela". A estrutura e a parafernália do órgão foram usadas para investigar, ilegalmente, adversários políticos do ex-presidente.
O uso político da Abin na gestão passada do governo federal é alvo de investigação da Polícia Federal (PF), que fez uma operação de busca e apreensão no gabinete e na residência do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que foi diretor da agência na gestão Bolsonaro.
Os agentes chegaram a pedir a suspensão do mandato do parlamentar, hipótese afastada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e negada pelo ministro Alexandre de Moraes — que conduz os inquéritos das milícias digitais e da tentativa de golpe de Estado, no STF.
Crítica de novela originou apelido
O termo “araponga” para classificar os integrantes da comunidade brasileira de inteligência vêm de uma novela da Rede Globo. Araponga ficou em exibição entre 15 de outubro de 1990 a 29 de março de 1991, teve 143 capítulos e ocupou a grade das 21h30. De autoria de três grandes nomes da dramaturgia brasileira — Dias Gomes, Lauro César Muniz e Ferreira Gullar —, a trama gira em torno das trapalhadas criadas pelo investigador Aristênio Catanduva, interpretado por Tarcísio Meira, e cujo codinome profissional é Araponga. A crítica dos autores da novela era à competência investigativa da Polícia Federal (PF) e do Serviço Nacional de Informações (SNI), das quais o personagem principal da novela tinha feito parte durante a ditadura — o Brasil tinha acabado de eleger Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente escolhido pelo voto direito após a redemocratização.
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