Entrevista

'O Itamaraty me deu uma bofetada', diz embaixadora Isabel Heyvaert

Diplomata questiona na Justiça o sistema de promoções do MRE, que, na avaliação dela, tem privilegiado homens brancos. Única mulher negra na lista para ser ministra de primeira classe, a escolha recaiu a favor de um colega quase 30 posições atrás

Lisboa — Com 47 anos dedicados à carreira diplomática, a embaixadora Isabel Cristina de Azevedo Heyvaert não esconde a frustração. Ministra de segunda classe, ela se diz boicotada pelo Itamaraty no processo de promoção, com colegas posicionados bem atrás dela nas listas sendo elevados a ministros de primeira classe, o último degrau da carreira. O caso mais recente em que foi escanteada ocorreu em dezembro último, quando um servidor, homem e branco, que estava na 61ª posição, progrediu. Ela era a 25ª da lista, mas a única mulher negra. O Ministério de Relações Exteriores, segundo ela, não pensou na diversidade que o governo tanto prega. "Levei uma bofetada", afirma.

Sem ter a quem recorrer no Itamaraty do ponto de vista administrativo, pois o processo de promoção para o topo da carreira cabe única e exclusivamente ao ministro — no caso atual, Mauro Vieira —, Isabel Heyvaert, que já comandou as embaixadas do Brasil na Etiópia e na Sérvia, decidiu recorrer à Justiça. Ela requereu uma liminar para suspender de imediato a promoção que considera injusta, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não acatou o pedido. O caso, no entanto, continua tramitando e se espera uma resposta para o fim de março ou o início de abril.

Isabel, que passou os últimos nove meses como conselheira econômica na embaixada do Brasil em Myanmar, na Ásia, assinala que está há 10 anos no quadro especial de diplomatas à espera de uma promoção. "Estou perplexa, pois a decisão do Itamaraty não só foi um desrespeito às políticas públicas que vêm sendo implementadas pelo governo como uma afronta a todas as mulheres que lutam por reconhecimento profissional no ministério", frisa. E acrescenta: "É um sofrimento emocional muito grande, sobretudo, porque eu sempre consegui abrir as portas do mundo diplomático onde eu exercia as minhas atividades em favor do Brasil. O reconhecimento é zero".

Para a embaixadora, o Itamaraty é dominado por uma elite que não aceita abrir mão de privilégios, favorecendo sempre os mesmos grupos. "Eu observo uma grande resistência a mudanças. Apesar de declarações no sentido de que vamos fazer o melhor possível para eliminar as desigualdades estruturais, isso não vem sendo aplicado na prática no Itamaraty. Há uma resistência, digamos, cultural e institucional muito grande", enfatiza. No entender dela, o Itamaraty representa o último bastião no governo que resiste em promover mudanças reais no sistema de promoções. "São poucas as mulheres em chefias relevantes no ministério e em postos no exterior. A maior parte do bolo de postos está nas mãos de homens, sobretudo, brancos", acrescenta. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio.

A senhora está movendo uma ação contra o Itamaraty. Por quê?

Há, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), um processo para reconhecer a legitimidade do meu pleito de ser promovida à ministra de primeira classe. Os advogados entraram com uma ação judicial denominada "Mandado de Segurança Preventivo", com pedido de liminar, para garantir a minha promoção. Ressalto, em especial, ser eu a única candidata no quadro especial de ministros de segunda classe, mulher e negra, a preencher todos os requisitos de promoção. A liminar foi indeferida, mas o relator do processo concedeu a continuidade do mandado de segurança para exame do mérito da demanda, que, se espera, tenha se reiniciado ao término do recesso do Judiciário.

A senhora pode explicar o que foi que aconteceu?

Em dezembro último, houve um processo de promoção no Itamaraty e um colega, homem e branco, que estava bem atrás de mim na lista, eu estava na 25ª posição, e ele, na 61ª, acabou sendo o escolhido. Não me pareceu um processo justo, tendo em vista que, no meu caso, dentro do contexto de políticas públicas, sou a única mulher diplomata negra qualificada para ocupar a posição de ministra de primeira classe.

Houve uma justificativa para isso?

Quando procurei uma explicação, a justificativa foi a de que o colega promovido ocupou postos difíceis, onde há algum tipo de conflito ou as condições de vida são mais difíceis. Mas essa visão não me convence. Além de tudo, eu também ocupei postos difíceis. Fui uma das primeiras diplomatas a servir no Haiti quando o Brasil estava chefiando a missão de paz da ONU. Era algo que eu queria acompanhar de perto pelo elemento histórico e pela especificidade da situação. Sem contar que, também no quadro de missões especiais, fui a primeira mulher a integrar um grupo de embaixadoras junto à União Africana e fomos ao Sudão e ao Sudão do Sul, no contexto da Resolução 1.325, que é a Resolução da ONU Mulher, Paz e Desenvolvimento. Essa é uma das resoluções consideradas das mais importantes das Nações Unidas, pois reconhece a importância de se integrar mulheres nos processos de negociação de paz. Então, fui para uma missão pioneira, das mais desafiadoras e, ao mesmo tempo, enriquecedoras que eu já tomei parte. Usar isso como elemento de consideração, em detrimento da minha experiência profissional, não me parece justo.

A senhora não teve como contestar a decisão administrativamente?

Não temos, como em outros países, por exemplo, o chamado Conselho de Estado, para o qual se pode levar o seu pleito e receber uma explicação.

Existe outra mulher negra ministra de segunda classe na lista de promoção?

Que eu saiba, não. Sou a única.

Caso a senhora saia vitoriosa no processo que move contra o Itamaraty, abrirá um precedente, certo?

É importante considerar essa possibilidade. Não há uma certeza quanto ao desfecho do processo, mas eu gostaria de poder contribuir para que houvesse um tratamento mais ajustado aos tempos atuais em relação à nova geração de mulheres negras diplomatas. Há outro ponto a ser ressaltado: ao me impedir de construir uma carreira, o Itamaraty me impossibilita, também, de servir em postos de primeira linha, por exemplo, na Unesco.

Como a senhora avalia a situação no Itamaraty em termos de promoção de diplomatas, de ascensão nas carreiras? Seguem-se as normas estabelecidas ou prevalece o privilégio a grupos específicos, que pulam etapas?

Vamos contextualizar um pouco. No início do governo do presidente Lula, a partir de 2023, marca-se uma inflexão em termos de políticas públicas relativas à promoção de gênero, diversidade e inclusão social. Inclusive, houve medidas no sentido de haver mais mulheres nos níveis mais elevados das carreiras públicas. O Itamaraty, em princípio, demonstrou intenção de acompanhar esse movimento, mas o que tem se visto na prática não é exatamente isso. Neste mês de janeiro, por exemplo, tivemos a formação do novo quadro de acesso para as promoções, que terão lugar no primeiro semestre de 2024. De 100% dos candidatos, apenas 18,6% são mulheres.

Como a senhora avalia essa desproporção?

Eu observo uma grande resistência a mudanças. Apesar de declarações no sentido de que vamos fazer o melhor possível para eliminar as desigualdades estruturais, isso não vem sendo aplicado na prática no Itamaraty. Há uma resistência, digamos, cultural e institucional muito grande. O Itamaraty, acredito, representa o último bastião no governo a promover mudanças reais no sistema de promoções.

E por que isso acontece? Onde está o problema?

A instituição só passou a admitir mulheres a partir de 1918. Depois, houve retrocessos, e os concursos voltaram a ser interditados às mulheres. É um setor da elite da sociedade brasileira, da elite econômica e social, que, tradicionalmente, é mais resistente a mudanças e não quer repartir seus privilégios, que, compreendem, também, uma real e significativa transferência de renda para tais grupos. Nesse quadro, os poucos diplomatas negros, em especial, as diplomatas negras, não dispõem desse capital social e econômico, ficam em nítida desvantagem em relação à maioria dos colegas brancos.

Há, hoje, uma mulher na secretaria-geral, que é o segundo posto na hierarquia do Itamaraty. Mas ainda não houve uma mulher chanceler no Brasil.

Não houve ainda. E nós temos poucas mulheres em chefias relevantes no ministério e em postos no exterior. Dentro do contexto geral das políticas públicas que estão sendo implementadas, não podemos esquecer disso nunca. É um objetivo do governo de haver mais mulheres em cargos proeminentes, mas não é exatamente isso que vem acontecendo, especialmente no Itamaraty. A maior parte do bolo de postos está nas mãos de homens, sobretudo, brancos.

Como funciona a estrutura de cargos no Itamaraty?

Quando nós saímos do Instituto Rio Branco, no início da carreira, exercemos o cargo de terceiro-secretário, e essa é a única promoção que se faz por antiguidade. A próxima etapa é de segundo-secretário, com vários critérios para promoção, como tempo de classe, tempo de chefias. Tudo isso começa a ser contado. Depois, vem primeiro-secretário, conselheiro, ministro de segunda classe e ministro de primeira classe, esses dois últimos, embaixadores. A partir do segundo-secretário, há a câmara baixa e a câmara alta. E as listas de promoções são sempre submetidas ao ministro das Relações Exteriores. Um dos principais problemas que se tem é que não há registros escritos das reuniões que tratam das promoções. O processo não é transparente. Nada fica em ata. Então, há uma dificuldade de se pedir revisão de julgamento.

A senhora ascendeu ao quadro de ministra de segunda classe por idade.

Exatamente. Em dezembro de 2014, quando completei 60 anos, saí do quadro ordinário de ministra de segunda classe e fui para o quadro especial. O sistema de promoção no quadro especial é diferente, porque depende única e exclusivamente do ministro. Ele é a única pessoa que decide quem vai fazer o quê, quem vai ser promovido ou não no quadro especial.

Em 10 anos no quadro especial, a senhora já não deveria ter sido promovida à ministra de primeira classe?

Tivemos uma dificuldade nesse processo de promoção, porque houve um grande ingresso de novos diplomatas e, concomitantemente a isso, houve a extensão da idade de aposentadoria, de 70 para 75 anos. Então, hoje, a carreira está engessada de um certo modo, porque não se abrem vagas. O processo se tornou ainda mais complicado. Ou seja, mais gente no quadro por mais tempo.

E como resolver isso?

Estão sendo estudadas medidas, mas a solução não se apresenta para o curto prazo.

É possível dizer que a estrutura do Itamaraty é machista e racista?

Como a população afrodescendente no Brasil, em geral, ocupa os níveis mais baixos da sociedade, da estrutura social, isso se reflete numa instituição como o Itamaraty, que acaba beneficiando os homens brancos e um pouco também as diplomatas brancas, que pertencem a esse grupo privilegiado.

A senhora realmente vê disposição de se mudar a estrutura do Itamaraty para uma realidade mais voltada para a diversidade?

O que tenho visto é a criação de mecanismos com uma assessoria de diversidade, diretamente ligada ao gabinete do ministro. Ou o Comitê Étnico-Racial. Mas todos eles com projetos a longo prazo, que, possivelmente, poderão beneficiar a nova geração, mas não uma pessoa que está pronta, como eu. Não vejo nenhuma ação prática. O próprio ministro das Relações Exteriores esteve em comissões da Câmara e do Senado para falar sobre as ações de diversidade dentro do Itamaraty, mas nada do que foi dito por ele se tornou realidade. Então, mais uma vez, insisto que o resultado das promoções no mês de dezembro me deixou perplexa. Pareceu-me incompreensível. Se tivesse sido uma mulher promovida, como foi o caso no primeiro semestre de 2023, que também estava atrás de mim na lista, ainda teria aceitado o resultado. Mas, a decisão do segundo semestre vai contra tudo o que vem sendo dito em relação ao que se deseja em matéria de promoção de mulheres.

Quem comanda o Comitê Étnico-Racial do Itamaraty?

Para dizer a verdade, tentei entrar em contato com o comitê via e-mail e jamais recebi uma resposta. Então, não sei, não conheço a pessoa, não tenho maiores informações. Sei que é uma mulher, mas não obtive nenhum outro dado concreto. Isso comprova que o Itamaraty tem se mostrado impermeável, sempre beneficiando as mesmas pessoas.

As portas do ministro estão sempre abertas para os servidores?

O papel de receber demandas dos servidores é da secretária-geral. Eu nunca fui recebida por ele.

Qual a sua trajetória dentro do Itamaraty?

Estou há 47 anos no Itamaraty, onde comecei como oficial de chancelaria. Ainda muito jovem, percebi que deveria ampliar os meus horizontes, fazendo o exame de admissão para a carreira diplomática. E me sinto extremamente frustrada como uma pessoa que passou a maior parte da vida dedicada à instituição. Entrei com 22 anos e estou com 69. Nesse tempo de trabalho, sempre procurei fazer o melhor. Acho importante também dizer que venho de uma família muito modesta. Outro dia, conversando com uma pessoa em São Paulo, ela me disse que gostaria muito de ter entrado para a carreira diplomática nos anos 1990. Ela é da Bahia, mulher e negra. Mas um professor dela a desestimulou, ao dizer que ela não teria a menor chance de ser promovida, de se tornar uma embaixadora. Agora, imagina alguém nos anos 1970, que era o meu caso, que não tinha internet, uma jovem do interior de Minas Gerais. Então, foi uma grande conquista. Por isso, a minha frustração de chegar ao ponto em que reúno todas as condições profissionais e técnicas e descobrir que não consigo avançar. Essa barreira precisa cair.

Como se sente ante essa sensação de rejeição por ser mulher e negra dentro da carreira profissional que a senhora escolheu?

É horrível, é um sofrimento emocional muito grande, sobretudo, porque eu sempre consegui abrir as portas do mundo diplomático onde eu exercia as minhas atividades a favor do Brasil, de manter um diálogo construtivo. O reconhecimento é zero. É muito frustrante.

A senhora acaba de encerrar sua missão em Myanmar, como conselheira econômica. O que fará?

Estou de férias no momento. E, diante da nova situação, ainda não posso prever o que vai acontecer comigo em termos de próximos trabalhos.

Como a Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras se posicionou em relação ao caso?

A associação efetuou gestões a favor da minha promoção tanto no primeiro quanto no segundo semestre do ano passado. Mas, aparentemente, não houve a acolhida esperada. O ministro sequer recebeu a presidente da associação. A gestão foi feita por meio de carta, respondida por um jovem assessor dele. Isso mostra que vivemos momentos bem difíceis no Itamaraty.

A senhora volta, efetivamente, para Brasília?

Sim. Achei que seria o momento de voltar a Brasília. Mas, entre 2019 e 2022, me foram negadas todas as oportunidades de trabalho, sejam de chefias, sejam de missões ao exterior. Digo isso porque vi colegas voltando do exterior e, imediatamente, sendo beneficiados com oportunidades profissionais que eu não tive. Inclusive, um colega, cuja mulher foi acusada de racismo, voltou para Brasília, recebeu um cargo comissionado. Isso é muito sério.

Nesse período não surgiu nenhuma oportunidade para a senhora?

Surgiu, sim. Um colega que estava em um posto difícil na África me procurou e me perguntou se eu gostaria de ir trabalhar com ele. Como ele conhecia meu trabalho na África, pois servi em Camarões, Moçambique e Etiópia, achou interessante dar continuidade ao que eu fazia. Esse colega disse que o ministro, que ainda era o Carlos França, havia concordado. Mas não passou nem três dias e o chefe de gabinete dele me telefonou e disse que não era bem assim, que havia começado o governo de transição e meu nome teria de ser submetido à futura equipe. Mas outra pessoa foi indicada para aquela missão. Escrevi, então, uma mensagem à administração do Itamaraty perguntando se o meu nome havia sido indicado pelo gabinete do ministro para aquele posto na África, que ninguém queria. O departamento me respondeu que não sabia de nenhuma indicação. Detalhe, quando me recusaram o posto por razões que até hoje desconheço, outro cargo estava vago na África havia mais de seis meses.

Ou seja, foi sabotagem.

Com certeza, foi sabotagem. Não tenho dúvidas disso. É muito triste. Acho que as mulheres diplomatas se sentem, de um certo modo, abandonadas, deixadas de lado. Na minha opinião, o caminho para resolver isso de uma forma mais estrutural seria a criação de uma instituição supraministerial, que analisasse as situações de representatividade nos cargos mais altos em toda a Esplanada dos Ministérios. Um órgão completamente independente. Isso é essencial. Enquanto as decisões sobre promoções ficarem a critério individual, não há como resolver os problemas de discriminação de uma maneira mais orgânica.

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