Coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, a irmã Petra Pfaller criticou a aprovação pelo Senado do projeto que acaba com o fim da saída temporária dos presos que alcançam essas condições, a "saidinha". Pelo texto aprovado, os encarcerados não poderão mais deixar a prisão em datas comemorativas, além de outras restrições.
A dirigente da pastoral, em entrevista ao Correio, afirmou que essa proposta é uma "tentativa de fazer com que pessoas presas apodreçam nas cadeias" e disse que o projeto ainda afeta a progressão de penas dessas pessoas.
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O texto foi aprovado ontem no Senado por larga margem, por 62 votos a 2. O relator foi o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). O governo liberou sua bancada, ou seja, não adotou um encaminhamento contra ou a favor. O projeto volta agora para a Câmara e, se aprovado, segue para a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A Pastoral Cacerária é vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para Petra Pfaller, as prisões e o encarceramento em massa "são uma máquina de tortura, de se livrar de uma população vista como indesejada".
No entendimento da coordenadora da pastoral, "a militarização do cárcere está mais forte hoje do que nunca". Ela se refere a medidas como o fechamento das prisões, tanto para familiares quanto para organizações da sociedade civil, o que dificulta a fiscalização de eventuais violações de direitos humanos.
Para Pfaller, os parlamentares aproveitam o medo legítimo da população para angariar apoio político a partir de ações populistas, "que não aumentam a sensação de segurança, mas sim violam os direitos da população encarcerada, que não podemos esquecer que são majoritariamente negras, pobres e periféricas". Confira os destaque da entrevista a seguir:
Como a senhora recebeu a aprovação, ontem (20), do projeto do fim da saída temporária pelo Senado?
A saída temporária, mais conhecida como "saidinha", é um direito da pessoa presa que se encontra em regime semiaberto, prevista na LEP (Lei de Execução Penal). A votação é mais um ataque aos direitos das pessoas encarceradas, que são violados cotidianamente. Com o objetivo de alterar a garantia da LEP, a possível aprovação do PL afeta não só a saidinha, mas também a progressão de regime das pessoas encarceradas, ambos direitos importantíssimos para a reinserção dessas pessoas na sociedade. É uma tentativa de fazer com que pessoas presas apodreçam nas cadeias.
A senhora se surpreendeu como placar da votação, com 62 votos favoráveis? Até mesmo parlamentares do governo não se opuseram ao projeto.
Infelizmente, o placar da votação não surpreende. Independentemente do governo, a política de segurança brasileira é sempre pautada na vingança e na seletividade de encarcerar especialmente pessoas negras, pobres e jovens. O governo Lula, especificamente, não se demonstrou mais afeito à pauta de pessoas privadas de liberdade até o momento, mantendo-se inerte diante de privatizações de unidades prisionais e da tentativa de privatização do sistema socioeducativo. As prisões e o encarceramento em massa são uma máquina de tortura, de se livrar de uma população vista como indesejada. E se essa população não é vista como humana, ela não merece nenhum tipo de direito ou de garantia. É isso que estamos presenciando com essa votação.
A sra. entende que o atual momento da segurança pública no país foi fator que contribuiu para essa decisão dos senadores?
Como dito anteriormente, não é necessariamente o momento, e sim como a política de segurança pública do Brasil funciona. Não é de hoje que os direitos da população encarcerada são atacados — em 2022, durante as eleições, por exemplo, o direito da população presa que estava apta a votar foi duramente atacado por um dos candidatos à Presidência. E vemos essa política punitiva se manifestando com cada vez mais força. A militarização do cárcere está mais forte hoje do que nunca, assim como o fechamento das prisões, tanto para familiares quanto para organizações da sociedade civil, o que dificulta a fiscalização de eventuais violações de direitos humanos que ocorrem atrás das grades. Essa realidade, ao contrário de contribuir para a promoção de segurança pública, somente dificulta ainda mais a reinserção de pessoas presas na sociedade.
Os números apontam que quase a totalidade dos encarcerados que se beneficiaram desse direito no fim de ano, por exemplo, retornaram. Por que ainda assim a senhora entende haver essa ação do Congresso nessas restrições?
A reação do Congresso não é baseada na realidade, e sim no senso comum de que 'criminosos estão saindo, colocando a sociedade em perigo', o que é um argumento falacioso. Os parlamentares se escoram no medo legítimo da população para angariar apoio político a partir de ações populistas, que não aumentam a sensação de segurança, mas sim violam os direitos da população encarcerada, que não podemos esquecer que são majoritariamente negras, pobres e periféricas. A saidinha, o direito violado da vez, é um direito que se aplica a homens e mulheres presos em regime semiaberto depois de um tempo da pena cumprida: 1/6 da pena se a pessoa é primária, 1/4 da pena se a pessoa é reincidente. E pessoas presas por crimes hediondos com resultado de morte não têm o direito à saída temporária.
Qual o impacto no processo de ressocialização de um encarcerado as saídas em datas comemorativas — como Dia das Mães, Natal e outras? E quais serão as consequências se essas vedações aprovadas forem mantidas, já que precisam ser confirmadas pela Câmara dos Deputados e depois vai à sanção do presidente da República?
A saída temporária existe para que a pessoa presa volte gradualmente ao convívio em sociedade. É um passo muito importante para reintegrá-la. É na saída temporária que, muitas vezes, mães e pais têm a única oportunidade de ver seus filhos e filhas ou até que pessoas presas têm a oportunidade de conseguirem se candidatar a vagas de trabalho ou de estudo externas à prisão. Recebemos muitos relatos, também, de pessoas que saem da prisão nas saídas temporárias e denunciam situações que aconteceram dentro das unidades prisionais para seus/suas familiares ou para a própria Pastoral Carcerária Nacional. Acabar com a saída temporária tem um impacto direto na possibilidade de denúncia das situações de violação de direitos humanos nos cárceres. Além disso, a maioria das pessoas presas estão encarceradas por crimes contra o patrimônio e por crimes relacionados ao tráfico de drogas, crimes que são cometidos, em sua maioria, sem violência ou grave ameaça. Se esse PL for aprovado, será um grande retrocesso, violando ainda mais os direitos das pessoas encarceradas.
A Câmara dos Deputados é tida, nesse tipo de matéria, até mais radical que o Senado. Se aprovada novamente pelos deputados, ao que tudo indica, que expectativa a sra. tem de um veto do presidente Lula? E que mensagem enviaria a ele?
Esperamos que o presidente Lula vete esse projeto de lei porque ele não tem como objetivo diminuir a violência, e sim causar mais sofrimento à população encarcerada e seus familiares. Os dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) de 2019 demonstram que a taxa de fuga de pessoas contempladas com direito à saída temporária é de apenas 0,99%. As saídas não aumentam fugas e crimes de maneira expressiva, contudo, são um instrumento importante para que as famílias tentem reestabelecer os frágeis laços de convivência restantes com a pessoa que esteve presa. Além disso, ao aprovar tal projeto, o presidente estaria concordando com uma ação inconstitucional dos parlamentares, o que não condiz com a postura de um chefe de Estado. Ele estará sendo conivente com a intensificação da dor física e mental de estar isolado e longe das pessoas que ama. Espero que o presidente seja iluminado ao receber o projeto e pense em todas as famílias negras, pobres e periféricas que serão afetadas por ele e vete integralmente o texto do projeto de lei.
A Pastoral tem alguma estimativa de quantos encarcerados serão atingidos por essas restrições?
A população encarcerada diretamente e imediatamente afetada pela extinção do direito à saída temporária é a que está no semiaberto. Dados do Relatório Preliminar de Informações Penais, produzido pela Secretaria Nacional de Políticas Penais, referente ao 2º semestre de 2023, indicam que há 116.203 pessoas presas no referido regime. Contudo, as violações de direito provocadas pelo projeto atingem, também, todas as demais pessoas presas, que vão ter ainda mais dificuldade para progredir de regime e assegurar seus direitos. Segundo o relatório, há, atualmente, no Brasil, 343.805 pessoas privadas de liberdade em regime fechado, às quais, caso o PL seja ratificado pelo presidente, precisarão se submeter a critérios sem base científica nenhuma para progredir para o semiaberto e, ainda, quando finalmente lá estiverem, não possuirão o direito à saída temporária.
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