Nas 135 páginas do relatório da Polícia Federal que gerou a operação Tempus Veritatis, a expressão "golpe" aparece 78 vezes. E "golpistas", 34. Para o Ministério Público e para o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), não restou dúvida de que Jair Bolsonaro e seus auxiliares tentaram implementar um golpe de Estado no país, via abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
A tentativa frustrada dos apoiadores de Bolsonaro se deu na proximidade do aniversário de 60 anos do golpe perpetrado por militares no país, em março de 1964. Nesses, os autores lograram êxito. Os dois momentos, separados por seis décadas, guardam semelhanças e diferenças.
A presidente da Comissão de Anistia, Eneá Stutz, especialista nesse tema, elenca três pontos em comum entre um golpe e a tentativa, e três fatores divergentes. Em comum: a participação ativa dos militares, o desprezo pela democracia e a aposta na vitória e na impunidade.
"Nesses dois momentos se registra envolvimento de militares de alta patente, os protagonistas, com cargos públicos e alta função na República, eram inimigos da democracia, e com forte desejo de rompimento do Estado Democrático de Direito. E a crença na vitória e na impunidade. Além de convergirem na farsa de que o golpe era a garantia da preservação da democracia. Uma mentira para criar um estado de exceção", disse Eneá Stutz ao Correio.
"Os atuais protagonistas, da tentativa de golpe de hoje, se filmavam, mantiveram as gravações guardadas, como nos mostraram essas investigações. Tinham confiança na impunidade, e na vitória eleitoral, que não veio. Queriam tomar o poder por um golpe de estado, com planilhas, minutas de estado de sítio. As gravações mostravam receio de serem presos."
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A tentativa de golpe dos tempos atuais não deu certo, no seu entendimento, por conta de três diferenças essenciais: faltou articulação e apoio internacional, sobrou despreparo e incompetência e houve forte resistências das instituições e da imprensa.
"O golpe de 64 teve essa articulação e apoio internacional, em especial dos Estados Unidos, que reconheceram a nova direção do Brasil como legítima. A do grupo de Bolsonaro, zero apoio do exterior. Ao contrário, o 8 de janeiro foi rechaçado no mesmo dia por França e Estados Unidos", disse Stutz, que é professora da Universidade de Brasília (UnB), onde é responsável pelo setor de memória, verdade e justiça do curso de Direito. Ela segue apontando as diferenças:
"Outro ponto totalmente divergente é o que vou chamar de despreparo e incompetência dos mentores dessa tentativa de golpe agora. Sem fundamento, sem lógica razoável, sem articulação política e estratégia. Em 1964 ainda tinha a crença na doutrina de segurança nacional, treinamento específico e o golpe no Brasil foi uma espécie de laboratório para o resto do continente", disse.
Ex-perseguido político na ditadura, o historiador e pesquisador Manuel Domingos Neto não hesita em afirmar que Bolsonaro e seu grupo civil e militar tentaram sim implementar uma ditadura no Brasil.
"A ditadura do passado foi assassina, de terror de Estado. A principal diferença é que essa tentativa foi ampla, à luz do dia, com os responsáveis mostrando a cara. E não tem essa história de isentar os militares que sabiam e nada fizeram. Se tiraram o corpo, prevaricaram do mesmo jeito", disse Domingos Neto.
"Nos encaminhávamos mesmo para um golpe, que não foi adiante por múltiplas razões, entre as quais a fragilidade do ícone desse grupo, que é Jair Bolsonaro. Um político frágil. E se tratou, diria, de uma tentativa desengonçada. E ao lado de lideranças sem força, casos dos generais Heleno e Braga Nettto. Se ainda fosse o Villas Boas e o Etchgoyen, talvez pudesse ser diferente."
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