entrevista — Jean-Marc Berthon, embaixador da França para direitos da população LGBT QIA+

'Brasil pode ter grande papel', diz embaixador da França para direitos LGBTQIA+

Diplomata considera que a mensagem do país — que, segundo ele, avança no tema mais do que várias nações progressistas — na comunidade internacional tem força para ecoar em cantos do mundo nos quais a homossexualidade sofre implacável perseguição

Vanguarda na defesa dos direitos da população LGBTQIA , a França tem, desde 2022, um embaixador dedicado exclusivamente ao tema, cuja missão é trabalhar "pelo respeito dos direitos e das liberdades" dessa comunidade "dentro da rede da diplomacia francesa". Na prática, o embaixador Jean-Marc Berthon faz ecoar, em escala global, debates sobre a violência contra homossexuais e transexuais e, ao mesmo tempo, estimula o compartilhamento de experiências internacionais e de políticas públicas em áreas como segurança, saúde e imigração, por exemplo. No ano passado, o país criou um fundo de R$ 10 milhões para que as embaixadas da França possam financiar projetos de defesa dos direitos dos LGBTQIA . Foi para falar sobre essas questões que Berthon conversou com o Correio, na representação do país europeu em Brasília.

O senhor ocupa um cargo que tem como um dos objetivos dar visibilidade a uma causa, a defesa dos direitos da população LGBTQIA . Como o suporte do governo da França está conseguindo amplificar esse debate?

Já temos resultados. Países que planejavam adotar legislações muito repressivas para a população LGBT renunciaram, graças ao trabalho da França. Estamos conseguindo trabalhar, sobretudo em mais casos individuais, mais preocupantes, pessoas que são perseguidas em função da orientação sexual, de gênero, que precisam ser protegidas — e nós protegemos — e, às vezes, precisam ir para a França. Também ajudamos ONGs, associações. Criamos um fundo com muitos milhões de euros para isso, o que nos permite financiar projetos na África, no Oriente Médio e na Ásia.

E qual o papel que o Brasil pode desempenhar nesse esforço para assegurar direitos e segurança para essas pessoas?

Pode ter um papel muito grande. Tem uma responsabilidade particular porque a voz do Brasil é ouvida no mundo todo. Aqui, nas Américas, é claro, pois ainda há países que punem a homossexualidade na América Central e no Caribe, e pode ter um papel importante na África. Metade dos países africanos criminaliza a homossexualidade. O Brasil é muito presente na África, passa mensagens sobre essa questão LGBT e essas mensagens podem ser ouvidas.

O Brasil pode ser uma ponte com o Sul Global, em que as reações a esse debate são maiores?

Em alguns países, dizem que a homossexualidade não existe localmente, que é um vício ocidental, que são os ocidentais que exportam a homossexualidade. E, por isso, seriam os ocidentais os únicos interessados nessa questão. Temos que combater essa visão, que é falsa, claro. É uma armadilha política. A homossexualidade existe no mundo inteiro, e não só nos países ocidentais, que reconhecem e protegem as comunidades LGBTQIA . É uma questão de respeito aos direitos humanos.

O Brasil é visto como um país amigável para comunidade LGBTQIA . Mas ostenta índices de violência contra a essa população muito altos. Contra as pessoas transgênero, é o país que mais mata. Como o senhor avalia esse paradoxo?

Não tenho explicação. Há um nível de violência elevado e a violência contra as pessoas trans está nesse contexto. Uma segunda observação é que a sociedade está muito polarizada. Há um movimento progressista de um lado e, do outro, forças mais conservadoras. Os dois movimentos se interagem. Quando há um progresso de um lado, há a reação do outro.

A extrema direita, no mundo todo, está se apropriando desse debate para aumentar a cisão social e a polarização política?

Temos observado isso nas Américas, assim como na Europa. Na França, temos uma sociedade menos polarizada e o tema LGBTQIA tem mais consenso. Adotamos o casamento homoafetivo em 2011. Teve muita oposição, mas, hoje, todas as camadas da sociedade aceitam, virou um consenso.

Há cada vez mais pessoas públicas e celebridades declaradamente homossexuais. O presidente da França, Emmanuel Macron, nomeou recentemente um primeiro-ministro gay, o jovem Gabriel Attal. No Brasil, temos o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, um senador, Fabiano Contarato (PT-ES), além das deputadas Erika Hilton (PSol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), igualmente conscientes do papel que exercem para dar visibilidade à comunidade LGBT. Estamos avançando?

O Brasil progrediu bastante nos últimos anos, há uma aceitação maior nesse sentido. E vai continuar nas próximas décadas. É claro que há debates, alguns muito duros, mas tenho o sentimento de que o Brasil está avançando e, em alguns assuntos, é mais avançado do que muitos países progressistas. Veja a questão da população trans. A transição de gênero no Brasil é mais fácil do que em muitos países, é baseada na auto-identificação.

Com base nas conversas com autoridades do governo e representantes da sociedade civil, qual a impressão que o senhor leva para a França
sobre o Brasil?

Conversei sobre a situação internacional e como o Brasil vem tratando esse problema. Na questão internacional, senti uma disposição muito grande das autoridades brasileiras de retomar o combate à criminalização universal dos direitos das pessoas LGBT. Em novembro passado, o Brasil aderiu à coalizão de 43 países engajados da defesa dos direitos das pessoas LGBT, que são direitos humanos. Conversando, vi que as pessoas estão bem dispostas a compartilhar (experiências) a respeito de nossas políticas públicas. Tratamos da capacitação de agentes públicos. Isso é muito importante para que não haja discriminação e para que possamos trabalhar as questões sobre polícia e saúde. Falamos de outros temas de cooperação — como internet e conteúdos de ódio nas redes sociais.

Com relação, especificamente, à atuação policial, o que a França pode nos mostrar como política exitosa?

O que fazemos bem é ter um controle muito grande dos atos anti-LGBT. Nisso, a gente pode oferecer a nossa experiência. Instalamos pontos de referência LGBT nas delegacias e decidimos capacitar 100% dos policiais para que acolham melhor as queixas dessa população.

E o que o senhor identificou, no Brasil, como políticas públicas que podem ser adotadas por outros países?

Falei dos direitos das pessoas trans, por exemplo, que estão bem claros. O quadro jurídico é bem avançado e pode inspirar muitos países.

O futuro que o senhor antevê é otimista em relação ao respeito aos direitos da população LGBT?

Enfrentamos uma polarização muito forte no mundo. Há países que avançam rapidamente. Todo ano aparece um país que discriminaliza (a homossexualidade). E há mais países que avançam do que países que regridem. É normal ficar indignado com coisas que não funcionam, mas temos que reconhecer que há mais dados positivos acontecendo do que negativos. É isso que alimenta meu otimismo.

 

 

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