8 de janeiro

Ricardo Cappelli: "Bolsonaro não gosta da democracia"

Secretário-executivo do Ministério da Justiça enxerga na ação de desgaste, promovida pelo ex-presidente contra STF, ministros da Corte, urnas eletrônicas e processo eleitoral, a base dos acampamentos golpistas e a depredação em 8/1

Cappelli:
Cappelli: "O que aconteceu não foi um domingo no parque. Foi gravíssimo. Invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, um atentado à democracia e aos patrimônios cultural, histórico e material do Brasil. A Operação Lesa-Pátria, da Polícia Federal (PF), segue sem data para acabar" - (crédito: Fotos: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)

Para o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, a ação do ex-presidente Jair Bolsonaro foi crucial na tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro. Ao não reconhecer a derrota no segundo turno da corrida presidencial para Luiz Inácio Lula da Silva e se omitir em relação aos acampamentos em frente aos quartéis do Exército em todo o país, estimulou seus apoiadores a agirem contra um governo legitimamente eleito — e a depredarem as sedes dos Três Poderes. Mas, antes, lembra Cappelli na entrevista que concedeu, ontem, ao programa CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília —, que Bolsonaro passou quatro anos açulando uma parcela da população contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros, além de lançar dúvidas sobre o processo eleitoral e as urnas eletrônicas. Leia, a seguir, os principais pontos da entrevista.

Qual o sentimento nessa data em que se celebra a democracia?

De dever cumprido. Foi um momento muito difícil, tenso e duro da história do país. Vimos atos inaceitáveis contra a democracia. Toda manifestação democrática é bem-vinda, mas uma manifestação democrática não pode se confundir com um atentado contra os Poderes e contra as instituições, com tentativa de golpe. O sentimento é que a democracia brasileira foi duramente testada, mas venceu e saiu ainda mais forte, com a união das instituições e com a posição firme do Supremo Tribunal Federal (STF) — estabelecendo uma linha clara, que não pode ser ultrapassada.

Um ano depois, o senhor acha que poderia ter sido diferente o enfrentamento ao que ocorreu na Esplanada?

Se pudesse voltar no tempo, faria tudo exatamente como fiz e como o presidente Lula, o ministro Alexandre de Moraes e os presidentes da Câmara e do Senado, junto com os governadores, fizeram. O que aconteceu não foi um domingo no parque. Foi gravíssimo. Invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, um atentado à democracia e aos patrimônios cultural, histórico e material do Brasil. A Operação Lesa-Pátria, da Polícia Federal (PF), segue sem data para acabar. Vamos identificar e tratar, na forma da lei, todos os que cometeram crimes contra a democracia.

Alguns policiais militares ficaram feridos, algumas pessoas saíram machucadas, mas poderia ter sido um banho de sangue. O senhor acredita que foi um detalhe que impediu isso?

Foi por muito pouco. Tínhamos o caso da soldada (da PMDF) Marcela (Pinno), que por pouco não teve a vida ceifada. Esses golpistas bateram com barra de ferro no capacete dela, racharam o capacete — que pesa em torno de 4kg —, arrancaram e iam matá-la, na hora que o subtenente Beroaldo (José de Freitas Júnior) impediu o pior. Eles buscavam desestabilizar a democracia e, felizmente, não conseguiram, em função da sabedoria na condução e da bravura de alguns policiais militares do Distrito Federal, que impediram o pior.

O senhor citou a Operação Lesa-Pátria, que teve (ontem) mais uma ação. Em um dos pontos do relatório da PF, o prejuízo está estimado em R$ 40 milhões. Como o senhor acredita que será feito o ressarcimento aos cofres públicos? De quem será feita a cobrança e como está sendo esse processo?

As pessoas estão respondendo a inquérito. Alguns foram julgados, todos possuem CPF, é um dano coletivo e isso vai ser cobrado e executado dessas pessoas. Porque aquele patrimônio não é um patrimônio desse governo, ou de governos. É patrimônio do Estado. Não se pode entrar em um lugar, depredar, destruir obras de arte que são do povo brasileiro e achar que não se tem responsabilidade sobre isso. Serão todos identificados e terão que ressarcir os cofres públicos.

Ao final do seu relatório, o senhor apresentou uma manifestação favorável ao coronel Fábio Augusto, que era o comandante da PMDF à época. Porém, ele foi denunciado, está preso e será julgado em fevereiro. Hoje, também com distanciamento e olhando todos os fatos, o senhor continua achando que ele perdeu o controle da tropa ou participou de uma conspiração?

Não fiz um relatório favorável ou desfavorável a ninguém. Quem tem acesso ao relatório da intervenção vai ver que fizemos um relatório técnico, relatando os fatos e contando aquilo que encontrei em 23 dias. Claro que, em 23 dias, não é possível fazer uma investigação profunda, e não temos também os instrumentos de investigação que a PF tem. O que disse no relatório é que o que me pareceu no momento que assumi: coronel Fábio Augusto perdeu o controle da tropa. Mas não tinha visto nele, naquele momento, uma intenção golpista ou algo parecido. Foi o registro que fiz. Se tivesse que voltar no tempo, faria novamente — foi o que eu encontrei naqueles 23 dias. Agora, há um inquérito na PF. Houve uma denúncia do Ministério Público Federal, que deve ter encontrado indícios e provas às quais não tive acesso. Meu papel na intervenção federal era estabilizar e assumir o comando das forças de segurança, retomar a linha de comando, a autoridade e devolver, com tranquilidade, a segurança ao governo do Distrito Federal. E foi assim que fiz. Costumo dizer que recebi um avião numa turbulência grave, lotado e caindo, e o desafio era estabilizá-lo e pousá-lo em terra firme, com todos vivos. Foi isso que fiz.

O senhor acredita que houve uma conspiração de integrantes da PMDF?

A preparação do dia 8 de janeiro foi completamente fora do padrão pelo comando da PMDF. Importante falar "o comando" porque não podemos confundir a atitude errada de alguns com uma corporação bicentenária, com muitos serviços prestados ao país. Exemplo: não tem, no 8 de janeiro de 2023, o plano operacional da PMDF para aquele dia, que é feito pelo Departamento de Operações da PM, que era comandado pelo coronel Jorge Naime. Funciona da seguinte forma: se faz um plano de ações integradas, define o que cada agência de segurança vai fazer e cada agência desdobra isso em um plano operacional. A PMDF não fez isso para o 8 de janeiro. Então, não se tem clareza sobre quantos homens tinha, quais batalhões foram mobilizados. As conclusões de quantos homens tinha foram pelas imagens, o que é muito precário. Outro exemplo: no dia, tinha linhas de grades de proteção fora do padrão, policiais em processo de formação, sem os equipamentos adequados. É muito fora do padrão o que aconteceu. É coincidência? Não me parece.

E o papel das Forças Armadas?

Nas Forças Armadas, pode ser que tivesse, aqui ou ali, uma simpatia. Mas o comando não apoiou esse movimento golpista.

Mas por que tanta dificuldade em retirar aquelas pessoas da frente do quartel-general do Exército?

Não há precedente, na história do Brasil, de acampamentos em frente aos quartéis-generais, claramente golpistas e que defendiam uma ruptura institucional. Foram montados no dia seguinte ao resultado do segundo turno, que deu a vitória ao presidente Lula. Jamais teriam sido montados se naquele momento não contasse com a simpatia e a permissão do então comandante das Forças Armadas, Jair Bolsonaro. Os acampamentos foram montados no dia seguinte do segundo turno da eleição e ficaram lá até o dia 8, uma atitude inaceitável. Na primeira semana de janeiro, chegaram a reduzir a presença, mas no final da semana voltaram a crescer. E aconteceu o que aconteceu.

Ao citar Bolsonaro, o senhor acha que ele tem vínculo com o que ocorreu na Esplanada?

Claro. Por que um presidente da República passaria quatro anos atacando as instituições, como fez? Passou quatro anos atacando o STF, um ministro da Suprema Corte e tentando atacar a credibilidade das urnas eletrônicas. Durante quatro anos, espalhou na sociedade um clima de instabilidade institucional. Passado o resultado das eleições, ele permitiu que fossem montados acampamentos em frente aos quartéis. O dia 8 não começa no dia 8; é o ponto final de um processo de tentativa de desestabilização da democracia.

O fato de Bolsonaro não ter feito o pronunciamento, que é de praxe quando um candidato é derrotado, mostra que ainda estava acreditando que poderia continuar no poder?

A beleza da democracia é que todo mundo pode votar em quem quiser, pode se candidatar a qualquer cargo, fazer campanha do candidato que quiser. Agora, decretado o resultado da maioria, todos precisam respeitar a Constituição. O ex-presidente tinha pouco apreço pela democracia e demonstrou isso ao longo de todo o mandato. Atitudes como essa são uma praxe no mundo inteiro — que o derrotado ligue para o vencedor. É isso que, inclusive, lastreia o pacto social em torno da Constituição e da convivência democrática. Quando ele não faz isso, está tentando colocar uma dúvida no resultado das eleições, portanto desestabilizar a democracia. É lamentável que ele tenha tido essa postura.

Como foi a sua interlocução, quando virou interventor, de uma hora para outra, no dia 8 de janeiro, com o então comandante do Exército, general (Julio César de) Arruda? Ele contribuiu ou colocou barreira para retirar as pessoas em frente ao QG do Exército?

Tive uma discussão muito dura, mas respeitosa, com o general, com o comandante militar do Planalto (Gustavo Henrique Dutra). Tinha determinação de entrar com a PM na noite do dia 8 e efetuar as prisões no acampamento. Ele ponderava que seria melhor fazer isso no dia seguinte. Criou-se um certo impasse até o ponto que disse que iria entrar, e ele disse que teria um banho de sangue. Com o impasse, ele fala que o general Arruda gostaria de conversar comigo. Nos dirigimos ao QG do Exército, onde me encontrei com o general Arruda. Tivemos também uma conversa difícil, na tensão do momento, mas também respeitosa. Assim que entrei, sentei com o coronel Fábio Augusto ao meu lado e o general Arruda me perguntou: "O senhor ia entrar aqui com tropas sem a minha autorização?" Respondi que "ia lhe informar, general". Ele virou para o coronel Fábio e disse. "Acho que eu tenho um pouco mais de tropas que o senhor, coronel". Foi um momento muito tenso e difícil. Argumentei com ele sobre a necessidade de desmontar o acampamento imediatamente em função dos absurdos que tinham acontecido. Perguntei: "O senhor não concorda, general?" Ele respondeu: "Não, o senhor tem que entender que o país está dividido e que, para eu desmontar o acampamento, preciso que o senhor devolva os ônibus que a Polícia Rodoviária Federal apreendeu". Respondi: "Nós não vamos devolver os ônibus e vamos botar todos na cadeia".

Quando ele falou das tropas, no seu entendimento ele estava ameaçando um confronto entre o Exército e a PMDF?

A leitura que fiz é que se nós tentássemos entrar com a PM, como ia entrar para prender todos, o Exército iria reagir. Foi isso que ele deixou claro.

Um ano depois, o senhor consegue dizer qual o personagem principal do 8 de janeiro, que atuou no enfrentamento à crise?

O presidente Lula, sem dúvida alguma, tomou as decisões estratégicas, e o ministro Flávio Dino. O Palácio da Justiça se transformou, naquele momento, no QG do governo. Vários ministros estavam lá. Às vezes, as pessoas ficam imaginando que houve algumas conversas, mas, veja, a história é escrita no calor dos acontecimentos. A todo momento precisávamos tomar decisões e precisávamos agir para retomar o controle da situação. Foi o trabalho de muitas pessoas. Mas, sem dúvida, a atitude do presidente Lula, dos presidentes dos Poderes, no dia seguinte, que se uniram, foram decisivas.

*Colaborou Nathallie Mildes, estagiária sob a supervisão de Fabio Grecchi 


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postado em 09/01/2024 03:55 / atualizado em 10/01/2024 15:43
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