O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou 24 países desde o início do governo com a manifesta intenção de dar curso a um dos principais eixos do governo na política externa: a defesa e o fortalecimento do multilateralismo e das organizações internacionais como fóruns legítimos de debate e decisões. Mas, depois de uma aclamada estreia na 27ª Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, em dezembro de 2022 — como presidente eleito, se reapresentou ao mundo com o slogan "O Brasil voltou" —, Lula chega ao fim deste primeiro ano de mandato com menos resultados do que gostaria.
A cúpula dos chefes de Estado do Mercosul, no Rio, na semana passada, foi o penúltimo compromisso do ano relacionado aos organismos e às associações multilaterais. Nesta semana, em Brasília, serão abertas as rodadas de negociação do G20 — grupo das 19 principais economias desenvolvidas e emergentes do planeta mais União Europeia —, as primeiras sob a presidência brasileira, que começou neste mês. O país vai defender sua agenda prioritária no cenário externo, como combate à fome e à miséria e a emergência climática.
Desde janeiro, Lula sustenta a necessidade de restabelecer e fortalecer os canais de negociação promovidos por colegiados internacionais na solução de controvérsias. De lá para cá, porém, o Brasil conseguiu poucos avanços em meio a muitas crises, duas guerras e uma disputa por fronteiras na Amazônia que pode descambar para um conflito militar.
As divergências dentro do Mercosul são exemplos das dificuldades que os países enfrentam na busca de consensos mínimos. O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, não esconde o desejo de romper algumas amarras do bloco sul-americano para poder firmar, de forma independente, acordos bilaterais de comércio, principalmente com a China. A Argentina, por sua vez, é a incógnita do momento. Ontem, o novo presidente, Javier Milei, assumiu o comando da Casa Rosada sem indicar com clareza se vai cumprir ou não as ameaças que fez na campanha eleitoral de tirar seu país do bloco, o que poucos analistas internacionais acreditam.
No sábado, antes da posse de Milei, a futura ministra de Relações Exteriores da Argentina, Diana Mondino, conversou com o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, para reafirmar o interesse do novo governo em permanecer no bloco. Ela esteve no Brasil, logo após as eleições argentinas, para jogar água na fervura provocada pelas declarações do novo presidente argentino.
"Sair do Mercosul tem um custo para os países, mas o Uruguai vem fazendo um movimento de esvaziar o bloco. Agora, com a entrada de Milei, isso tende a acentuar mais os impasses dentro do Mercosul", avalia a professora de relações internacionais da ESPM Denilde Holzhacker. Para ela, o Mercosul é uma organização "que vai continuar tendo um papel na troca de comércio, mas sem nenhum grande avanço". "É possível que o Brasil aceite flexibilizar (regras) para fazer seus acordos de cooperação com outros países, como já é o interesse declarado pelo Uruguai e provavelmente será o da Argentina", prevê.
Modo de alerta
Para piorar, a região entrou em modo de alerta com a ameaça da Venezuela de tomar à força da Guiana a região de Essequibo. Nessa questão, porém, a diplomacia brasileira tem um ponto a comemorar: conseguiu unir praticamente todos os vizinhos na condenação pública dos atos de hostilidade e na necessidade de se buscar uma solução pacífica e negociada para a crise.
Dos 12 países da América do Sul, apenas os dois envolvidos na crise, a Bolívia — aliada do ditador venezuelano Nicolás Maduro — e o Suriname não assinaram o comunicado conjunto do Mercosul no sentido de alertar que "ações unilaterais que devem ser evitadas, pois adicionam tensão" e conclamar "ambas as partes ao diálogo e à busca de uma solução pacífica da controvérsia".
Foi um recado direto às iniciativas dos dois países em conflito de buscar apoios externos ao continente. Enquanto a Guiana anuncia que fará exercícios militares com a Força Aérea dos Estados Unidos, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, avisa que irá à Rússia para buscar o apoio do presidente Vladimir Putin.
A crise na fronteira Norte é o mais relevante desafio às pretensões do Brasil de retomar a liderança geopolítica na América do Sul, depois do fracasso das negociações com a União Europeia em torno de um acordo para derrubar barreiras comerciais que se arrasta há mais de duas décadas. Lula apostava na assinatura do acordo, mas encontrou resistências da França e da Argentina, e teve que passar a presidência do bloco ao Paraguai sem atingir o objetivo. Na análise do especialista em relações internacionais da Editora Alternativa Literária Hugo Albuquerque, "insistir no acordo da União Europeia com o Mercosul foi um erro".
Brics ampliado
Neste ano, o Brasil também viu sua influência no Brics — acrônimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — ser reduzida, após a entrada de novos membros no clube dos emergentes, como Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. O presidente Lula ainda teve que explicar a entrada de regimes não democráticos, como Arábia Saudita e Irã. "Não quero saber que pensamento ideológico tem o governante, quero saber se o país está dentro dos critérios que estabelecemos para fazer parte do Brics", declarou Lula, após a Cúpula do Brics, na África do Sul, em agosto.
Para o embaixador aposentado e professor Paulo Roberto de Almeida, após quatro anos de governo Bolsonaro como "pária antimultilateralista", qualquer mudança de rumo seria bem recebida pela comunidade internacional. Mas, segundo ele, "o que se observou foi um ativismo seletivo caracterizado pela divisão do mundo entre um Ocidente supostamente declinante e um inexistente Sul global, por acaso, incluindo duas grandes autocracias interessadas numa nova ordem global antiocidental".
O Brasil também não conseguiu deixar uma marca indelével da passagem do país pela presidência rotativa do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), ao longo de todo o mês de outubro. A guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, há mais de dois meses, pegou a ONU de surpresa. Números extraoficiais, que ainda não foram confirmados de forma independente, apontam para mais de 17 mil mortos só na Faixa de Gaza, em decorrência dos bombardeios das Forças Armadas de Israel.
A diplomacia brasileira tentou conduzir a aprovação de uma resolução que viabilizasse um cessar-fogo, mas sua proposta de paz negociada acabou vetada pelos Estados Unidos, apesar de ter recebido voto favorável de 12 dos 15 membros do colegiado. O fortalecimento da ONU como principal organismo multilateral e a reforma do Conselho de Segurança são algumas das prioridades da política externa brasileira.
Com a crise no Oriente Médio, o Brasil também acabou afastado das conversas sobre a guerra na Ucrânia, depois de declarações dúbias sobre a invasão russa. Assim como está fazendo, agora, em relação à disputa entre Venezuela e Guiana, Lula se habilitou para ser um negociador da guerra na Ucrânia, mas não obteve acolhida, principalmente, dos países europeus que integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliada dos ucranianos.
Doutora em história, política e bens culturais pela Fundação Getulio Vargas (FGV), Monique Sochaczewski avalia que Lula enfrenta a nova realidade geopolítica global, mais inamistosa e menos propensa ao multilateralismo. Para ela, receitas tradicionais da diplomacia não conseguem responder à complexidade atual das relações entre os países. "Lula fez muitas viagens importantes e simbólicas, visitou a Argentina e o Uruguai, os Estados Unidos, foi à China e ao Oriente Médio. O que a gente está vendo, apesar de um ativismo muito grande, na verdade, são os limites da política internacional em 2023. Com a complexidade dos conflitos, as ferramentas tradicionalmente usadas pela política externa brasileira talvez não estejam mais dando conta."