A visibilidade do Supremo Tribunal Federal (STF) que, nos últimos anos, virou alvo de protestos nas ruas e agora entrou na pauta de votação do Congresso Nacional, é parte de um processo que, na verdade, não surgiu no piscar de olhos de um curto período da história. Vem de longe, pelo menos desde a Constituição, e passando por ganhos de poderes que a Corte conquistou nessas décadas. Esse é o entendimento da jornalista Grazielle Albuquerque, doutora em ciência política e mestre em políticas públicas, que acaba publicar o livro Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF, da editora Amanuense. A obra trata de como o STF chegou no noticiário, como se deu esse processo também de se divulgar e o impulso que teve a partir da criação da TV e da rádio Justiça. "Com o tempo, o Supremo foi aprendendo a jogar o jogo midiático, a entrar na mídia", diz a autora.
No livro, a senhora trata da proximidade da visibilidade do STF, sua aproximação com a sociedade. Como se deu esse processo?
O recorte do livro é de 1988 a 2004, da Constituinte à Reforma do Judiciário, mas traz dados que chegam à antessala do mensalão. Depois vem a Lava Jato e tudo o mais. O que está acontecendo agora não ocorreu num piscar de olhos. É um processo histórico. Entendo o agora a partir do passado. Estudo tanto a cobertura do tribunal como a profissionalização da sua comunicação. De maneira sintética: estudo como o STF foi aprendendo a jogar o jogo midiático. É uma via de mão dupla: com o aumento do poder político, a sociedade passa a se interessar mais pelo STF e ele não fica inerte a isso, também passa a trabalhar sua imagem.
O que o STF fez para melhorar sua imagem, ou como cuidou dela?
O que eu chamo de agendamento estratégico do Supremo varia com o tempo. No final dos anos 1980 e início dos 1990 a comunicação era com o release, focada no jornalismo, período de criação do comitê de imprensa. Dali em diante, há um movimento de desenvolvimento da assessoria e, além disso, o Supremo muda o enfoque da sua comunicação. Nos anos 2000, o foco sai do jornalismo e vai para a transparência e accountability. Surge a TV e a rádio Justiça, com transmissões das sessões, as discussões no plenário. Hoje, há uma preocupação com a desinformação, o uso das redes sociais e a relação com as big techs. A comunicação do STF acompanha essa lógica do tempo histórico.
Como a sociedade começa a ver o STF?
Começa a ver pelo interesse despertado a partir do aumento do poder político. O 2º capítulo do livro mostra essa evolução nos anos 1980, 1990 e 2000. O Supremo sai da Constituição como uma corte constitucional, recursal e originária. E, com o tempo, foi angariando poder além do escopo do que a Constituição havia desenhado inicialmente. Temos alguns exemplos: como a Emenda Constitucional 3, que regulamentou a Ação Declaratória de Constitucionalidade. Ou seja, o STF passa a também dizer o que é constitucional, não só o que é inconstitucional. Há também a reforma do Judiciário que criou a súmula vinculante. Com isso, quando se fere uma súmula, é possível reclamar direto ao STF. Significa dizer que se um prefeito do interior descumprir uma súmula, em vez de o processo ficar pingando no fórum, no Tribunal estadual e STJ [Superior Tribunal de Justiça], ele vai direto ao Supremo. É um quadro que mostra a ampliação do poder político do STF.
A senhora fala em ciclos que envolvem o tribunal. Como são eles?
O que vemos agora é uma explosão, mas vale ver esse desgaste em ciclos. No impeachment da Dilma, por exemplo, onde existia o jargão "com o Supremo com tudo" (a frase famosa do ex-senador Romero Jucá), havia o desgaste com grupos de esquerda que atribuíam ao STF um papel conivente ao golpe/impeachment. Logo depois, temos a Lava-Jato e aí há um corte. Há uma disputa sobre o que é justiça, se a da Lava-Jato ou a do STF. A Lava-Jato estimula e catalisa uma série de críticas ao STF que vinham desse ciclo anterior. Aí veio um novo momento de desgaste institucional à direita, um ciclo que chamo de o "Supremo é o povo", que era o mote usado pelos bolsonaristas nas ruas. Foram manifestações muito explícitas contra o tribunal. O 8 de janeiro foi a explosão, mas é preciso ver como esse sentimento foi se instalando em parte da população. E aí é importante distinguir críticas de ataques. No governo Bolsonaro, saímos das críticas aos ataques ao STF. Houve uma escalada. Você compare com o que houve nos Estados Unidos, na derrota de Donald Trump. A barbárie foi contra o Capitólio, que é o Congresso dos Estados Unidos, onde estão os deputados e senadores eleitos pelo povo. Aqui, além de Congresso e Planalto, atacaram o STF, um poder que sequer tem voto.
O Senado aprovou agora essa PEC que limita o STF. A senhora entende haver algum excesso
do tribunal?
O STF começou a reconhecer seu excesso quando a própria ministra Rosa Weber, na presidência do tribunal, fez um esforço para diminuir o poder monocrático dos ministros. Excesso, tem. A decisão colegiada perdeu espaço para a monocrática e o STF começou a reduzir isso de forma tardia. Uma linha histórica mostra que o STF passa a ter um poder muito maior com o tempo. Não é de agora. Há pelo menos um ponto de ampliação de poder da Corte por décadas. E isso não se resolve do dia para a noite. O que vemos agora é uma tentativa do Congresso de limitação, mas ela não é uma tentativa desinteressada. O Congresso entendeu esse desgaste público do STF e está se aproveitando disso.
A senhora entende haver uma sanha do Congresso contra o STF?
É preciso "desromantizar" isso no sentido de entender que não estamos falando de uma sanha, ou de algo súbito. Na eleição de 2022 se via claramente a presença de bolsonaristas mirando o Congresso, em especial se propondo a conseguir vagas no Senado. Este grupo teve uma atuação forte na aprovação dessa PEC, uma pauta antiga deles (embora não exclusiva desse grupo) que se projeta pós-eleição de 2022. Se é possível ver esse movimento do Congresso, por outro lado, acho que, em muitos aspectos, a PEC está tocando em pontos que o próprio STF já atuava para se conter. O Senado aproveitou o desgaste do tribunal, que não é de agora, para mandar recado. Viu a oportunidade. Acho que, nesse caso, temos uma PEC que reflete mais os interesses do Legislativo do que uma correção de rumos do Supremo. E nem sempre esses dois lados da equação se equivalem. É preciso ter em mente que não se resolve um processo de reequilíbrio histórico entre Poderes de forma casuística.