A eleição de Javier Milei como presidente da Argentina, no domingo, repercutiu no mundo político brasileiro. Governistas, no geral, evitaram comentar a fundo a vitória do ultradireitista e se limitaram a elogiar o funcionamento das instituições democráticas argentinas. A oposição, por sua vez, festejou a chegada de Milei ao poder como uma nova esperança para a extrema direita nas Américas.
Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parabenizou de forma fria o vencedor do pleito, na noite de domingo, o ex-presidente Jair Bolsonaro recebeu, nesta segunda-feira, uma ligação de Milei e foi convidado a participar da cerimônia de posse, em dezembro. Em meio à tensão com o governo brasileiro, especialmente após as críticas do então candidato argentino a Lula, a diplomacia estuda enviar um outro representante do alto escalão para o evento.
Na avaliação de analistas, o cenário é apenas outro desencontro entre as políticas da Argentina e do Brasil e, possivelmente, repetirá o visto na dobradinha Bolsonaro-Alberto Fernández. Boa parte das negociações internacionais são estratégicas para ambos os países e devem ser mantidas de forma pragmática. A relação, porém, será fria. Resta ver se Milei manterá o discurso de deixar o Mercosul — algo que Bolsonaro também chegou a defender ao ser eleito, e nunca aconteceu.
Em conversa com jornalistas à porta da Fazenda, o ministro Fernando Haddad foi econômico nas palavras. "Agora é desejar sorte, celebrar o fato de que o presidente Lula demonstrou apreço pela democracia, que o nosso continente tem de fortalecer a democracia. Temos de aguardar os acontecimentos", argumentou.
Já o ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Paulo Pimenta, foi duro. Para ele, Lula só deve considerar uma aproximação com Milei caso o argentino peça desculpas pelas ofensas dirigidas ao petista durante a campanha. O então candidato chamou o chefe do Executivo brasileiro de "ex-presidiário", "ladrão" e "comunista".
"Eu não ligaria, só depois que ele me pedisse desculpas. (Milei) Ofendeu de forma gratuita o presidente Lula. Cabe a ele o gesto, como presidente eleito, de ligar para se desculpar. Depois que acontecesse isso, eu pensaria na possibilidade de conversar", declarou Pimenta.
No domingo, Lula parabenizou o novo governo da Argentina sem citar o nome de Milei, o que foi visto como um sinal da tensão que está por vir entre os países. Também se manifestaram os chefes do Legislativo brasileiro. Arthur Lira (PP-AL), que comanda a Câmara dos Deputados, felicitou o presidente eleito e o povo do país vizinho pelo exercício democrático.
"A Câmara dos Deputados continuará trabalhando para estreitar ainda mais as relações comerciais, políticas e culturais entre as duas nações", disse.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), fez o mesmo: "Reafirmo meu compromisso com o diálogo e com o fortalecimento das relações entre as duas nações e coloco à disposição o Congresso brasileiro para iniciativas que busquem esse objetivo", frisou.
A oposição, por sua vez, comemorou a eleição de Milei como se fosse sua própria vitória. Bolsonaro publicou em redes sociais uma ligação por vídeo que fez com Milei. "O trabalho vai para fora da Argentina. Você representa muito para nós, democratas e que somos amantes da liberdade", enfatizou o ex-presidente ao aliado argentino.
Na chamada, o ex-presidente também confirmou que vai à posse de Milei, em 10 de dezembro. Para bolsonaristas, a vitória do ultradireitista contra o peronista Sergio Massa foi vista como uma chance de retorno da extrema direita ao comando de países das Américas, especialmente com a possibilidade de uma nova eleição do estadunidense Donald Trump em 2024.
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Acordos estratégicos
A expectativa de analistas políticos é que o cenário entre Argentina e Brasil na Era Milei repita o ocorrido entre o governo de Bolsonaro e o do atual presidente argentino, Alberto Fernández. No período, houve um afastamento que ainda não tinha sido registrado na relação entre os países, incluindo trocas de alfinetadas entre os chefes de Estado.
O brasileiro citava constantemente a situação econômica argentina, com forte inflação e crise generalizada, como um atestado de falha da esquerda. O afastamento levou, inclusive, à perda do posto brasileiro de principal parceiro comercial da Argentina, que foi ocupado pela China. Mesmo assim, a diplomacia ainda deve manter uma relação pragmática.
O coordenador de Análise Política da consultoria BMJ, Lucas Fernandes, destacou o fato de Milei ter baixado o tom em seu primeiro discurso como presidente eleito, em relação ao que falou na campanha. Na avaliação do especialista, mesmo o argentino prometendo deixar o Mercosul e cancelar a entrada no Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a decisão só traria prejuízos ao país.
"A entrada da Argentina no Brics é extremamente importante. O pragmatismo deve imperar, em algum nível", comentou Fernandes, citando o acesso a créditos que o país terá ao entrar no bloco. Como Milei, diferentemente de Bolsonaro, não conseguiu formar uma base considerável no Congresso, a composição do governo pode adotar um formato mais pragmático do que as ideias ultraliberais defendidas pelo presidente eleito. Isso só vai ficar mais claro após a formação dos ministérios.
Do lado do Brasil, também há interesse em manter o diálogo, mesmo o governo Lula tendo apoiado o adversário de Milei, Sergio Massa. "O que é importante destacar é a diferença do tipo de exportação que o Brasil tem para a Argentina do que tem para os Estados Unidos, a Europa e a China. Para a Argentina, a gente consegue vender bens manufaturados, de maior valor agregado. De maneira alguma cortar relações ou fechar portas do Mercosul ou dos Brics vai ser estratégico para o governo brasileiro", pontuou Fernandes.
Alcides Costa Vaz — professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do grupo de pesquisa sobre política e segurança internacional — também avaliou que Milei diminuiu o tom após o resultado da eleição. Para ele, o novo governo deve optar pelo pragmatismo para manter os acordos estratégicos.
"Nosso relacionamento com a Argentina é muito denso, são várias agendas. Eu diria que surgem muitas incertezas pela divergência do ponto de vista ideológico, e essas divergências, em contexto eleitoral, tendem a se exacerbar. Vamos ver do presidente eleito, e daqui a pouco do presidente de fato, qual vai ser sua posição", disse Vaz.
Vaz enfatizou ainda que a estabilidade econômica e política é sempre um fator que beneficia as relações internacionais. "Se ele for capaz de trazer maior estabilidade do ponto de vista político e levar a Argentina a uma rota de saída desta crise que ela vive — a quarta desde a redemocratização —, isso fará bem à relação bilateral. A questão é, ele consegue?"
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