Análise

Nas entrelinhas: dois cenários para as relações com a Argentina

"Desde a redemocratização de ambos os países, o pior momento das relações entre Brasil e Argentina foi durante os governos do atual presidente Alberto Fernandes e Jair Bolsonaro, que nunca se encontraram", lembra o jornalista

As relações entre o Brasil e a Argentina nem sempre foram pacíficas, como na guerra Cisplatina (1825-1828). Algumas vezes, foram até estreitas demais, como durante a Operação Condor, na segunda metade dos anos 1970, na qual houve estreita colaboração entre os órgãos de segurança dos regimes militares dos países contra seus oposicionistas.

Neste domingo, com o país dividido entre o anarco-capitalista Javier Milei (La Liberdade Avanza) e o peronista Sérgio Massa (Unión por la Pátria), as conexões do Brasil com "los hermanos" novamente estão em xeque. O primeiro diz que não pretende ter relações com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que a Argentina sairá do Mercosul, se for eleito — o que praticamente inviabilizará o acordo do bloco com a União Europeia (UE). O segundo promete estreitar ainda mais os laços com o Brasil e fortalecer o bloco econômico sul-americano.

Pesquisa divulgada pela AtlasIntel (10/11), a última divulgada em razão da legislação eleitoral, com 8.971 entrevistados, revelou que Milei aparece com 52,1% e Massa, com 47,9%. Em razão do último debate, no qual Massa, o atual ministro da Economia, surpreendeu Milei, analistas dizem que a diferença entre ambos reduziu.

Massa questionou de forma dura a eficácia das propostas econômicas de Milei, entre as quais privatizar a saúde e a educação públicas, deixar o comércio com a China exclusivamente a cargo do setor privado e "dolarizar" a economia. Vice de Milei, Vitória Villarruel, às vésperas da eleição, radicalizou o discurso ainda mais ao afirmar que somente uma "tirania" pode retirar o país da crise.

A Argentina é o maior, mais importante e mais antigo parceiro do Brasil na América Latina, mas são relações tensas, com altos e baixos, desde sempre. Em 25 de junho de 1823, as então Províncias Unidas do Sul ou Províncias Unidas do Rio da Prata foram o primeiro país a reconhecer a Independência do Brasil e seu regime monárquico, único em todo continente americano. O ministro Bernardino Rivadavia, porém, em carta ao primeiro chanceler do Império do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva, dizia que "queria tratar definitivamente da evacuação da Faixa Oriental", hoje Uruguai.

Sete anos antes, em 1816, o atual Uruguai, chamado de Banda Oriental (Faixa Oriental), pelas Províncias Unidas do Sul, e de Província Cisplatina, pelo Brasil, tinha sido ocupado pelo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, sendo incorporado ao território brasileiro. Entretanto, a Argentina, cuja Independência se deu em 1816, mas só teve o primeiro reconhecimento em 1821, justamente por parte de Portugal, entendia a ocupação como uma invasão do seu território. Não havia uma relação amistosa.

A diplomacia fracassou. D. Pedro I decidiu manter a margem direita do Rio da Prata, devido à importância estratégica e portuária de Colônia do Sacramento e de Montevidéu. Em 4 de novembro de 1825, a Argentina rompeu relações diplomáticas com o Brasil.

Em 10 de dezembro de 1825, Pedro I declarou guerra às Províncias Unidas do Sul, que durou até 27 de agosto 1828. A paz foi alcançada depois de três anos de combates. Com interesses estratégicos na região, a Inglaterra mediou o acordo, do qual resultou a criação de um estado-tampão: o Uruguai.

Tiro no pé

Deve-se ao presidente José Sarney, em 1985, um ponto final na secular desconfiança entre os dois países. Em muito contribuiu para isso a derrota argentina na Guerra das Malvinas, na qual o "aliado principal", os Estados Unidos, apoiou a Inglaterra. Foi o embrião da integração regional, consagrada no Mercosul, hoje ameaçada.

O ponto mais alto da cooperação entre os dois países foi a abertura dos segredos nucleares, com a criação, em 1991, no governo Collor, da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).

Urquiza, Mitre, Roca, Sáenz Peña, Justo, Perón, Frondizi, Videla, Alfonsín, Menem, Duhalde e Kirchner — cada presidente argentino teve sua própria política em relação ao Brasil, o que passou a ser uma característica estrutural da sua diplomacia, seja qual fosse o regime (democracia ou ditadura) ou crise econômica (inflação, crise, estabilidade, crescimento). Entretanto, a democracia e o crescimento econômico sempre favoreceram a parceria.

Desde a redemocratização de ambos os países, o pior momento das relações entre Brasil e Argentina foi durante os governos do atual presidente Alberto Fernandes, que desistiu da reeleição, e o presidente Jair Bolsonaro, que nunca se encontraram, entre dezembro de 2019 e dezembro de 2022.

Entretanto, Fernández se reuniu com Lula seis vezes, a última na Cúpula do Mercosul, em julho. Agora, esse avanço nas relações subiu no telhado porque a eventual vitória de Milei porá tudo a perder em termos do acordo entre o Mercosul e a UE, além de prejudicar as relações comerciais com os dois países.

O maior projeto em curso é a construção de um gasoduto entre a reserva Argentina de Vaca Muerta, a segunda maior jazida de gás de xisto e a quarta de petróleo não convencional do mundo, até o Sul do Brasil, com financiamento brasileiro. Inviabilizar esse projeto é um tiro no pé.

 

Mais Lidas