A inércia do pacto pela democracia que uniu o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, a partir de 8 de janeiro, esgotou-se na quarta-feira, quando o Senado aprovou a Proposta de Emenda Constitucional que limita os poderes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), por uma maioria de 52 votos a favor e apenas 18 votos contrários. A decisão coroou uma articulação do presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senador Davi Alcolumbre (União-AP), com a oposição bolsonarista liderada pelo senador Rogério Marinho (PL-RN). Essa aliança somava inicialmente 48 votos, mas recebeu a adesão do líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), que liberou a base e votou a favor da proposta, com mais três governistas.
Há duas linhas de forças convergentes na decisão. A primeira é o desejo do senador Alcolumbre de voltar à Presidência da Casa, com apoio do atual presidente, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), num rolo compressor que está em ação desde quando a proposta fora aprovada na CCJ, em 40 segundos, ou seja, sem qualquer discussão. A segunda, é a atuação da bancada de Bolsonaro, que saiu do isolamento com essa aliança e busca um ajuste de contas com os ministros do Supremo, que foi a instituição que confrontou e barrou o negacionismo, durante a pandemia de covid-19, e o golpismo, durante todo o governo Bolsonaro e no 8 de janeiro passado, quando os Três Poderes foram invadidos e depreciados por radicais da extrema direita bolsonarista.
Esse é o bloco majoritário no Senado, hoje, quem quiser que se iluda. Se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve que fazer concessões para ter o apoio do Centrão na Câmara, após a volta de Alcolumbre ao comando do Senado, no futuro, ainda sentirá saudades do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que agora sairá por cima. Porque não porá em pauta na Câmara as mudanças aprovadas pelos senadores em tramitação especial. Mas isso deixa o Supremo como refém da Câmara. O texto proíbe decisões individuais de ministros que suspendam a eficácia de leis ou atos dos presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Congresso.
O presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, acusou o golpe. Ressaltou que o "STF não vê razão para mudanças constitucionais que visem alterar as regras de seu funcionamento". E destacou a atuação da Corte nas crises: "O STF, nos últimos anos, enfrentou negacionismo, funcionou como dique de resistência. Por esse papel, recebeu ataques verbais. Após esses ataques, o STF vê com preocupação avanços legislativos sobre sua atuação". Completou Barroso: "Em todos os países que viveram retrocesso democrático a mudança começou pelas supremas cortes".
Ambiguidade
Nos bastidores da Corte, havia surpresa com a decisão e muita irritação, porque os ministros estiveram e continuam sob ataque dos bolsonaristas. Quem verbalizou de forma mais dura esse sentimento foi o ministro Gilmar Mendes, que qualificou a PEC como uma "ameaça" ao Judiciário. O ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, endossou as críticas de Barroso e Gilmar. A decisão do Senado reflete um clima de descontentamento com decisões da Corte que, segundo a maioria, invadem atribuições do Legislativo.
O resultado da votação turvou a relação da gestão Lula com o Supremo, porque houve uma ambiguidade muito grande do governo. Enquanto o líder no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), defendia a rejeição da PEC, o líder no Senado, Jaques Wagner, votou a favor da proposta. Todos sabem que Wagner é muito mais ligado ao presidente Lula do que Randolfe. Seu voto surpreendeu ministros do próprio Executivo, que trabalhavam contra a PEC. O líder do governo no Senado teria atraído cinco votos favoráveis de senadores do PSD, entre eles, de Otto Alencar (BA), Mara Gabrilli (SP) e Angelo Coronel (BA). Senadores que estavam propensos a votar contra a matéria não compareceram à sessão, como Omar Aziz (AM).
O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD-MT), chegou a se exonerar para votar contra a PEC.
Essa situação fragilizou o governo num momento muito delicado, em que várias propostas da equipe econômica que aumentam a arrecadação e o Orçamento da União de 2024 precisam ser aprovadas no Congresso, inclusive a reforma tributária. Como o ex-presidente Jair Bolsonaro, com seus direitos político cassados, apesar de manter grande influência, deixou de ser uma ameaça imediata à democracia, o apoio por gravidade ao governo Lula de parte da opinião pública perdeu sua força de inércia.
Cobram-se, agora, resultados do novo governo. Em relação à economia, isso ocorre em dois níveis: primeiro, no âmbito da grande massa empobrecida do país, que é a base eleitoral mais resiliente do presidente Lula, o que demanda políticas sociais, transferência de renda, empregos e fomento do empreendedorismo; segundo, no mercado propriamente dito, os atores da economia formal, principalmente os produtivos, que desejam investimentos, sobretudo em infraestrutura. A rigor, o estresse entre Executivo, Legislativo e Judiciário não interessa ao governo Lula, mas parece que a ficha não caiu para parte de sua base.
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