Análise

Nas Entrelinhas: Milei governará entre liberais e peronistas

Novo presidente argentino "precisa formar maioria no Congresso, principalmente na Câmara". Jornalista lembra que a coligação União pela Pátria, de Massa, perdeu 10 assentos, mas ainda é a maior bancada da Casa

 Argentine presidential candidate for the La Libertad Avanza alliance Javier Milei (L) celebrates with his sister Karina Milei after winning the presidential election runoff at his party headquarters in Buenos Aires on November 19, 2023. Libertarian outsider Javier Milei pulled off a massive upset Sunday with a resounding win in Argentina's presidential election, a stinging rebuke of the traditional parties that have overseen decades of economic decline. (Photo by LUIS ROBAYO / AFP)
       -  (crédito:  LUIS ROBAYO/AFP)
Argentine presidential candidate for the La Libertad Avanza alliance Javier Milei (L) celebrates with his sister Karina Milei after winning the presidential election runoff at his party headquarters in Buenos Aires on November 19, 2023. Libertarian outsider Javier Milei pulled off a massive upset Sunday with a resounding win in Argentina's presidential election, a stinging rebuke of the traditional parties that have overseen decades of economic decline. (Photo by LUIS ROBAYO / AFP) - (crédito: LUIS ROBAYO/AFP)
postado em 21/11/2023 03:55 / atualizado em 21/11/2023 08:09

Se a vitória de Javier Milei nas eleições argentinas foi incontestável, com uma diferença de quase 3 milhões de votos a mais que Sergio Massa, o futuro de seu governo ainda é uma grande incógnita. Tem um mês para montar seu governo e formar maioria no Congresso. Nesse ínterim, terá que administrar as incertezas econômicas do país, com uma corrida atrás de dólar e a inflação em disparada.

No seu primeiro dia como presidente eleito, Milei reiterou a intenção de fechar o Banco Central, dolarizar a economia e pôs na ordem do dia as privatizações, a começar pela petroleira do país. Milei quer privatizar, também, a Telám — a TV pública do país — e a Rádio Nacional. E pretende visitar Israel e os Estados Unidos antes de tomar posse, marcada para 10 de dezembro.

Precisa formar maioria no Congresso, principalmente na Câmara. A coligação de partidos peronistas União pela Pátria, do candidato Sergio Massa, perdeu 10 assentos, mas seguirá sendo a maior bancada da Casa, com 108 das 257 cadeiras. A segunda força, com 93 deputados, é a coalizão de centro-direita Juntos pela Mudança, cuja candidata Patricia Bullrich ficou de fora do segundo turno, mas apoiou o presidente eleito. O partido A Liberdade Avança, de Milei, elegeu 35 deputados.

Juntos, A Liberdade Avança e Juntos pela Mudança, porém, têm 20 deputados a mais do que os peronistas. Essa aliança com os liberais-conservadores é a chave para a estabilidade política do país e a sustentação do programa econômico de Milei. O ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), que o apoiou, é uma liderança influente no Congresso. No segundo turno, foi um fator de moderação do discurso de Milei. Entretanto, os fantasmas dos ex-presidentes Raúl Alfonsin e Fernando de La Rúa, da União Cívica Radical, que derrotaram o peronismo nas urnas, mas não terminaram o mandato, assombram a Argentina de Milei.

Resiliência

A vitória de Alfonsín havia imposto ao peronismo a primeira derrota nas urnas, com o país quebrado, humilhado e frustrado. Em 1985, o Plano Austral tentou corrigir o curso, com controle de preços, salários e câmbio, redução dos gastos do Estado e freio à emissão monetária.

Seguiram-se os Planos Austral II e Primavera: congelamento de preços, tarifas, salários e câmbio. O fracasso desses planos produziu hiperinflação, escalada do dólar, desemprego, recessão e desgaste político. Alfonsín renunciou cinco meses antes de concluir o mandato, no dia 8 de julho de 1989. O peronista Carlos Menem assumiu a Presidência com um programa neoliberal.

Em 1999, 10 anos depois, as denúncias de corrupção e a deterioração do quadro econômico-social no segundo mandato de Menem levaram o eleitorado a votar, novamente, contra o peronismo. As eleições foram vencidas pela Alianza UCR-Frepaso, Fernando De la Rúa-Carlos “Chacho” Álvarez, que se mostrou incapaz de governar.

Domingo Cavallo, que comandou o programa de reformas neoliberais de Menem, retornou ao Ministério da Economia, em 2001, e recebeu do Congresso a missão de buscar a estabilidade, com a receita “blindagem” financeira, aumento impostos, reestruturação da dívida e deficit zero. A deterioração social e a desordem econômica, porém, atingiram níveis insustentáveis, com saques e violentas manifestações. Sob a pressão dos “panelaços”, Cavallo e De la Rúa renunciam.

Em duas semanas, entre 20 de dezembro de 2001 e 2 de janeiro de 2002, a Argentina teve cinco presidentes. O peronista Ramón Puerta, presidente do Senado, que assumiu porque “Chacho” Alvarez havia renunciado; Adolfo Rodríguez Saá, governador da província de San Luis, eleito presidente provisório, que decretou a moratória e, depois, renunciou; novamente o presidente do Senado Ramón Puerta, que após 15 minutos entregou o cargo; o peronista Eduardo Camaño, presidente da Câmara, como designa a Constituição, para os casos de renúncia do presidente do Senado.

Finalmente, a Assembleia Legislativa escolheu o senador peronista Eduardo Duhalde como novo presidente, para completar o mandato de De la Rúa, até dezembro de 2003. Em seu discurso ao Congresso, logo após a eleição, ele anunciou o fim da conversibilidade que mantinha o peso atrelado ao dólar há 10 anos. Além disso, manteve a moratória de sua dívida externa.

Duhalde assumiu a Presidência de um país desnorteado. Sua prioridade era reconstruir a governabilidade. Substituiu o apoio do establishment econômico-financeiro por uma aliança entre o setor produtivo nacional e o peronismo tradicional, “pesificou” a economia, mas, pela primeira vez na história, a Argentina conheceu a fome e a proliferação da miséria.

Com a posse do ministro da Economia Roberto Lavagna, em 2002, o país começou a se recuperar. Inicia-se um breve ciclo de crescimento econômico.

Nas eleições de 2003, enfrentam-se propostas antagônicas para a Argentina, polarizadas nas candidaturas de Néstor Kirchner (centro-esquerda) e Carlos Menem (centro-direita), ambos peronistas. Vitorioso após a desistência deste último, Kirchner assegura a governabilidade e o crescimento do país, que chamou de “refundação” da Argentina, ciclo político que se esgotou agora, com a derrota de Massa.

 

Se a vitória de Javier Milei nas eleições argentinas foi incontestável, com uma diferença de quase 3 milhões de votos a mais que Sergio Massa, o futuro de seu governo ainda é uma grande incógnita. Tem um mês para montar seu governo e formar maioria no Congresso. Nesse ínterim, terá que administrar as incertezas econômicas do país, com uma corrida atrás de dólar e a inflação em disparada.

No seu primeiro dia como presidente eleito, Milei reiterou a intenção de fechar o Banco Central, dolarizar a economia e pôs na ordem do dia as privatizações, a começar pela petroleira do país. Milei quer privatizar, também, a Telám — a TV pública do país — e a Rádio Nacional. E pretende visitar Israel e os Estados Unidos antes de tomar posse, marcada para 10 de dezembro.

Precisa formar maioria no Congresso, principalmente na Câmara. A coligação de partidos peronistas União pela Pátria, do candidato Sergio Massa, perdeu 10 assentos, mas seguirá sendo a maior bancada da Casa, com 108 das 257 cadeiras. A segunda força, com 93 deputados, é a coalizão de centro-direita Juntos pela Mudança, cuja candidata Patricia Bullrich ficou de fora do segundo turno, mas apoiou o presidente eleito. O partido A Liberdade Avança, de Milei, elegeu 35 deputados.

Juntos, A Liberdade Avança e Juntos pela Mudança, porém, têm 20 deputados a mais do que os peronistas. Essa aliança com os liberais-conservadores é a chave para a estabilidade política do país e a sustentação do programa econômico de Milei. O ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), que o apoiou, é uma liderança influente no Congresso. No segundo turno, foi um fator de moderação do discurso de Milei. Entretanto, os fantasmas dos ex-presidentes Raúl Alfonsin e Fernando de La Rúa, da União Cívica Radical, que derrotaram o peronismo nas urnas, mas não terminaram o mandato, assombram a Argentina de Milei.

Resiliência

A vitória de Alfonsín havia imposto ao peronismo a primeira derrota nas urnas, com o país quebrado, humilhado e frustrado. Em 1985, o Plano Austral tentou corrigir o curso, com controle de preços, salários e câmbio, redução dos gastos do Estado e freio à emissão monetária.

Seguiram-se os Planos Austral II e Primavera: congelamento de preços, tarifas, salários e câmbio. O fracasso desses planos produziu hiperinflação, escalada do dólar, desemprego, recessão e desgaste político. Alfonsín renunciou cinco meses antes de concluir o mandato, no dia 8 de julho de 1989. O peronista Carlos Menem assumiu a Presidência com um programa neoliberal.

Em 1999, 10 anos depois, as denúncias de corrupção e a deterioração do quadro econômico-social no segundo mandato de Menem levaram o eleitorado a votar, novamente, contra o peronismo. As eleições foram vencidas pela Alianza UCR-Frepaso, Fernando De la Rúa-Carlos “Chacho” Álvarez, que se mostrou incapaz de governar.

Domingo Cavallo, que comandou o programa de reformas neoliberais de Menem, retornou ao Ministério da Economia, em 2001, e recebeu do Congresso a missão de buscar a estabilidade, com a receita “blindagem” financeira, aumento impostos, reestruturação da dívida e deficit zero. A deterioração social e a desordem econômica, porém, atingiram níveis insustentáveis, com saques e violentas manifestações. Sob a pressão dos “panelaços”, Cavallo e De la Rúa renunciam.

Em duas semanas, entre 20 de dezembro de 2001 e 2 de janeiro de 2002, a Argentina teve cinco presidentes. O peronista Ramón Puerta, presidente do Senado, que assumiu porque “Chacho” Alvarez havia renunciado; Adolfo Rodríguez Saá, governador da província de San Luis, eleito presidente provisório, que decretou a moratória e, depois, renunciou; novamente o presidente do Senado Ramón Puerta, que após 15 minutos entregou o cargo; o peronista Eduardo Camaño, presidente da Câmara, como designa a Constituição, para os casos de renúncia do presidente do Senado.

Finalmente, a Assembleia Legislativa escolheu o senador peronista Eduardo Duhalde como novo presidente, para completar o mandato de De la Rúa, até dezembro de 2003. Em seu discurso ao Congresso, logo após a eleição, ele anunciou o fim da conversibilidade que mantinha o peso atrelado ao dólar há 10 anos. Além disso, manteve a moratória de sua dívida externa.

Duhalde assumiu a Presidência de um país desnorteado. Sua prioridade era reconstruir a governabilidade. Substituiu o apoio do establishment econômico-financeiro por uma aliança entre o setor produtivo nacional e o peronismo tradicional, “pesificou” a economia, mas, pela primeira vez na história, a Argentina conheceu a fome e a proliferação da miséria.

Com a posse do ministro da Economia Roberto Lavagna, em 2002, o país começou a se recuperar. Inicia-se um breve ciclo de crescimento econômico.

Nas eleições de 2003, enfrentam-se propostas antagônicas para a Argentina, polarizadas nas candidaturas de Néstor Kirchner (centro-esquerda) e Carlos Menem (centro-direita), ambos peronistas. Vitorioso após a desistência deste último, Kirchner assegura a governabilidade e o crescimento do país, que chamou de “refundação” da Argentina, ciclo político que se esgotou agora, com a derrota de Massa.

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