A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (Cpasf) volta, nesta semana, a pautar dois projetos de lei que prometem acalorar os debates na Câmara: o que institui a identidade civil do nascituro e o que pretende proibir a união poliafetiva. Na quarta-feira, o colegiado vai promover uma audiência pública para debater o poliamor, com presença do pastor Silas Malafaia.
Derivada da antiga Comissão de Seguridade Social e Família, a Cpasf surgiu no início de 2023 e, desde então, tem sido guiada pelas pautas de costumes. Em 8 de fevereiro, o colegiado aprovou mais de 240 projetos, muitos deles relacionados às questões previdenciárias, mas, também, às civis e sociais, como o que proibiu o casamento homoafetivo.
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A intenção da presidência do grupo é votar todas as propostas, independentemente do caráter ideológico. Com isso, a Cpasf tem sido um dos colegiados que mais aprovam projetos de lei por sessão. Segundo o presidente, Fernando Rodolfo (PL-PE), "um projeto tem que ser votado de qualquer jeito e, mesmo que seja para arquivar, ele precisa ser pautado, não tem como zerar uma pauta que tem uma fila de mais de 300 projetos".
Entre os projetos de lei em tramitação na comissão, estão alguns que tratam de alienação parental, "cura gay", banheiro para transexuais, proibição da terapia hormonal de redesignação de gênero para crianças e adolescentes, além de poliamor e identidade civil do nascituro. Por ser formada, majoritariamente, por parlamentares ultraconservadores, os debates se tornam palco para discursos religiosos e ameaças de retrocessos em relação a direitos civis.
Dos 16 titulares, apenas três deputados são da base do governo. Treze estão identificados com a extrema direita. Há ainda um bloco parlamentar representado pelos deputados de esquerda Henrique Vieira (PSol-RJ) e Erika Hilton (PSol-SP).
Essa formação tem favorecido o avanço de propostas conservadoras. "Eles criaram uma trincheira de uma pauta de retirada de direitos, e essa trincheira é composta, inclusive, pela presidência da comissão. Eles encontraram o espaço necessário para poder tomar de assalto a comissão. A presidência e a maioria da comissão estão nas mãos da extrema direita", avaliou a deputada Erika Kokay (PT-DF).
"Muito se discute no Parlamento banheiro para pessoas trans, casamento de pessoas LGBT, aborto, e pouco se discute o combate à pobreza e à desigualdade socioeconômica no país. Esses debates de costumes são levantados pela ultradireita, que não tem o compromisso de enfrentar o principal problema do Brasil que é a desigualdade socioeconômica", pontuou a deputada Duda Salabert (PDT-MG), que comparece em algumas reuniões, ocupando a vaga destinada ao PDT.
Direitos civis
Sobre as pautas de costumes, o caráter inconstitucional de alguns projetos divide opiniões entre os integrantes da comissão. No caso da proibição do casamento homoafetivo, deputados progressistas e especialistas apontam que a inconstitucionalidade reside em impedir direitos civis de um determinado grupo da sociedade, mas os parlamentares que votaram a favor da proibição discordam.
Na discussão sobre o poliamor e a identidade civil do nascituro, essa polarização sobre a constitucionalidade volta à tona. "Nossa Constituição é muito acolhedora. Projetos nesse sentido podem ser alvo de várias ações de inconstitucionalidade", observou Fernanda Carla Vidal Pereira, integrante do Cantelmo Advogados e especialista em direito civil.
Para a advogada, as leis precisam acompanhar a evolução da sociedade, e não o contrário. "Não é a sociedade que se adapta ao direito, é o direito que se molda à sociedade. Melhor o poder público regulamentar do que gerar uma insegurança jurídica", argumentou Fernanda.
O projeto de lei que pretende proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi baseado no artigo 226 da Constituição, que define casamento como união entre "homem e mulher". Essa interpretação literal do texto impulsionou a aprovação do relatório na Cpasf, mas o mesmo não deve se repetir em outras comissões pelas quais ainda deve passar, como a de Direitos Humanos, em que a maioria é formada por progressistas. "A Constituição não pode ser interpretada exatamente ao pé da letra. É impossível um legislador colocar em um documento só, em um texto, todas as nuances da sociedade, tudo que a sociedade precisa. É muito difícil proibir considerando o pé da letra da Constituição", ponderou a advogada.
No caso da união poliafetiva, o debate tende a ser ainda mais acirrado. O formato de família composto por mais de duas pessoas, atualmente, é considerado crime pelo Código Penal, apesar de a prática se tornar cada vez mais comum no Brasil — alguns trisais já obtiveram autorização judicial para firmar contratos de união estável. "A composição de novas famílias tem sido analisada pelo direito civil e constitucional. O civil tem que sair dessa camisa de ferro que vê as coisas muito tradicionalmente, é preciso ver que existem no Brasil outras realidades", avaliou Rubens Beçak, professor de direito constitucional e teoria geral do Estado da Universidade de São Paulo (USP).
O mesmo ocorre com as deliberações acerca da identidade civil do nascituro. O projeto prevê que o bebê tenha direitos reconhecidos desde a sua concepção, diferentemente do que estabelece a legislação atual, onde o ser humano é dotado de direito a partir do nascimento com vida. A iniciativa tem o apoio do movimento pró-vida, mas preocupa os defensores dos direitos das mulheres, já que, na prática, pode dificultar, ou até mesmo impedir, a interrupção legal da gestação, como nos casos de estupro ou falta de perspectativa de vida extrauterina.
Influência religiosa
Muitas das pautas estão vinculadas a uma ideologia guiada pela religiosidade. A Cpasf é formada, em sua maioria, por membros autodeclarados cristãos. Dos 32 integrantes titulares da Comissão, 19 são membros da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e 10 da Frente Parlamentar Católica (FPC).
Com 210 deputados, a FPE é um dos blocos mais numerosos da Câmara. A FPC, por sua vez, conta com 193 parlamentares. Nas duas, os partidos conservadores têm peso significativamente maior do que os progressistas e, por isso, conseguem dar o tom dos debates, assim como fazem na Cpasf.
Esse é um recorte da composição geral da Câmara, onde, de acordo com o Instituto de Estudos da Religião (Iser), dos 513 deputados, a maioria se autodeclara católica (45,81%), cristã (16,76%) ou evangélica (14,81%) — majoritariamente formada por parlamentares de direita: 73,3% dos declarados cristãos são conservadores, e 75% dos evangélicos se alinham à direita.
Essa composição se reflete no teor das discussões da Cpasf, onde a postura religiosa determina o rito de votação dos projetos. O relatório da proposta que proíbe a união homoafetiva, por exemplo, é carregado de citações bíblicas e da visão cristã do que é o casamento. O deputado Pastor Isidório (Avante-BA) é conhecido por aparecer no plenário com a Bíblia aberta nas mãos. Na última sessão que discutiu os direitos civis do nascituro, o deputado exibiu um cartaz com o versículo "Disse Jesus: 'deixai vir a mim as criancinhas'. Aborto não!".
A presença constante do discurso religioso dentro do Parlamento é vista como uma afronta à laicidade do Estado. "Desde 1989, após a promulgação da Constituição — que prevê o princípio da laicidade —, o Estado e a religião são coisas diferentes", contextualizou o professor Rubens Beçak. "Há uma confusão do púlpito religioso com a fala política. Não deveriam ser esferas que se misturam, e isso não é bom porque fere o princípio da laicidade. A mistura das pautas religiosas não faz bem para a democracia, é algo que deve ser combatido, porque é uma realidade e vem aumentando", completou.
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