Entrevista

Philippe Orliange: 'Brasil e França, hoje, convergem'

Para o diretor executivo da Agência Francesa de Desenvolvimento, retomada do diálogo de alto nível pelo governo Lula reaproximou os países em torno de uma agenda comum, pautada pela prioridade à sustentabilidade e o combate à desigualdade

Com o fim da presidência de Jair Bolsonaro, o Brasil voltou à normalidade das relações internacionais. Com a França, retomou o diálogo de alto nível, o que levou ao compartilhamento de objetivos voltados para a sustentabilidade e o combate à desigualdade. "Quando olhamos, de Paris, para o Brasil, desde a mudança de governo, detectamos muita convergência estratégica entre as agendas do Brasil e da França. O presidente (Luiz Inácio) Lula (da Silva) falou, por exemplo, sobre transição energética, e combate às mudanças climáticas com inclusão social. É a nossa agenda", afirmou Philippe Orliange, diretor executivo para países da Agence Française de Développement (Agência Francesa de Desenvolvimento). Nesta conversa com o Correio, afirma que a AFD pretende estimular projetos voltados para o desenvolvimento econômico na Amazônia e no Nordeste, nos próximos três anos. Na semana passada, a AFD firmou parcerias com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco da Amazônia (Basa). Para Orliange, que morou no Brasil entre 2015 e 2017, "esses acordos foram uma sinalização do interesse que as duas partes têm em estreitar relações. Vamos ter missões mais técnicas de especialistas para as duas instituições, até o fim do ano. Queremos formalizar os acordos no início de 2024". Leia a seguir os principais pontos da entrevista.

É curioso o aumento de financiamentos aprovados pela AFD, mesmo durante o governo Bolsonaro. Como explicar isso?

Houve aumento por três razões. A primeira, atores como estados, municípios, bancos públicos e o setor privado continuaram investindo. Os estados do Nordeste e cidades desta região, por exemplo, mantiveram uma agenda voltada para isso, para a sustentabilidade. (A segunda razão) No setor privado, houve um interesse maior para a agenda de mudanças climáticas justamente na época do governo Bolsonaro. E a terceira foi o programa do auxílio emergencial durante a pandemia. A AFD entrou como co-financiadora junto ao Banco Mundial (Bird), BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), NDB (Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos Brics), CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe), todas as instituições financeiras presentes no Brasil que participaram desse programa do governo federal.

O senhor pode explicar os acordos da ADF com o Basa e o BNDES?

O BNDES tem sido um parceiro da AFD desde 2012. A cooperação com o Basa é nova e aconteceu porque a atual liderança do banco quer desenvolver colaborações internacionais, algo que não era exatamente a política da antiga gestão.

E qual é o foco? Já existem projetos para preservação da Amazônia?

Ainda não. Mas o que a gente se comprometeu a fazer, de acordo com o memorando (de intenções), é desenvolver uma carteira de projetos voltados para a sustentabilidade, especificamente na Amazônia, e identificar projetos para podermos fazer uma linha de crédito ao banco para que financie esses projetos. E teria, também, se for de interesse dos bancos, um componente de parcerias técnicas — ou seja, treinamento, estudos.

Tem uma previsão de recursos para esses dois acordos

Não está definido, porque vai ocorrer somente depois, dentro das negociações financeiras com as instituições. Por exemplo: no caso do Basa, os investimentos serão de 80 milhões de euros (aproximadamente R$ 420 milhões pela cotação de ontem). Com o BNDES pode ser mais, de até 500 milhões de euros.

Quais serão os próximos passos dos acordos com o BNDES e o Basa?

Foram uma sinalização do interesse que as duas partes têm em estreitar relações. Vamos ter missões mais técnicas, de especialistas para as duas instituições, até o fim do ano, para vermos a forma, setores, modalidades da parceria financeira que pretendemos estabelecer. Queremos formalizar os acordos no início de 2024.

O governo anunciou um programa para o desenvolvimento do Nordeste. Também pode ser parte dessa parceria?

Esse acordo do BNDES com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), da Organização das Nações Unidas, é para o programa Sertão Vivo. A AFD também priorizou, há muitos anos, o Nordeste, e isso teve início no governo Bolsonaro.

Por quê?

Como os governadores do Nordeste adotaram, publicamente, posições a favor da implementação do Acordo de Paris, isso fez com que a AFD trabalhasse muito estreitamente com o Consórcio Nordeste. Recentemente, a AFD assinou uma linha de crédito com o Banco do Nordeste e tem várias operações em andamento com estados e municípios da região. Temos operações em preparação com empresas de água e esgoto. Uma das coisas que a AFD faz, que nem todas as instituições financeiras podem fazer, é financiamento do setor público sem garantia soberana. A maioria dos órgãos multilaterais fazem financiamento a estados, municípios ou bancos com aval da União. A AFD pode fazer financiamento a bancos ou a empresas públicas de esgoto e de energia sem esse aval. Quer dizer, o risco é tomado pela agência. É uma modalidade interessante.

Sempre foi assim?

É uma coisa específica da AFD, porque ela opera essa janela sem o aval soberano há muitos anos. Historicamente, as primeiras operações da AFD como banco de desenvolvimento foram operações de crédito a empresas públicas, não soberanas. E o Brasil, com o número de autarquias não dependentes, e com o sistema nacional de fomento próprio, tem muitos parceiros que se prestam muito bem para fazer financiamento direto e mais rápido.

E quanto o Nordeste representa dos financiamentos da AFD?

Nossa carteira no Brasil gira em torno de 2,2 bilhões de euros e a participação do Nordeste é pequena. Mas, na carteira que está em construção, a região vai representar a maior parte do volume destinado para os próximos três anos, em novos projetos, de 400 milhões a 500 milhões de euros.

Qual é a impressão que tem do Brasil, após deixá-lo em 2021? O que mudou?

Quando olhamos, de Paris, para o Brasil, desde a mudança de governo, detectamos muita convergência estratégica entre a agenda do Brasil, a da França e a da própria AFD. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou, por exemplo, sobre transição energética e combate às mudanças climáticas com inclusão social. É a agenda da AFD. Lula participou da cúpula sobre o novo pacto financeiro, em Paris, em junho, e a mensagem do encontro foi evitar ter que escolher entre combater a pobreza e combater as mudanças climáticas. Era evitar isso. A resposta é que temos que avançar nas duas frentes, simultaneamente. Essa foi a mensagem. Foi isso o que o Brasil colocou, também, na presidência do G20. A gente percebe todas essas convergências e que o governo quer, por exemplo, usar mais o sistema nacional de fomento — ou seja, os bancos públicos. Além disso, o governo tem uma visão do papel da cooperação internacional muito clara e quer mais engajamento internacional. Acho muito positivo.

Na conjuntura atual, existem dois extremos climáticos no país. Muita chuva e enchentes no Sul e uma seca inédita na Amazônia. Como a AFD pretende ajudar o Brasil nisso? É o objetivo dessa parceria?

Diria que é até um motivo a mais de estreitar relações com o Brasil. O que está acontecendo é um pouco o que aconteceu na Europa, no ano passado, em vários países. Mostra que as mudanças climáticas estão acontecendo.

Não dá para ignorar mais, certo?

Certo. E isso está tendo um impacto provavelmente maior do que a gente esperava, num prazo mais curto do que a gente esperava. É uma questão de urgência. E a resposta que podemos dar é a liderada pelo governo do Brasil. As instituições internacionais e seus parceiros podem colaborar nessa resposta do governo, com uma visão integral. No caso da Amazônia, não é só uma questão de conservação — é uma questão de desenvolvimento sustentável integral, olhando para as necessidades da população da região. Muitos habitantes da Amazônia moram em cidades e isso quer dizer que questões como água e esgoto precisam ser resolvidas um impacto favorável em termos de desenvolvimento sustentável da região. Além disso, geração de emprego para pequenos produtores e cadeias de valor sustentáveis, todo esse trabalho precisa ser feito e pode ser acompanhado pelas agências internacionais. Obviamente, é uma questão, também, de mudança de governo — com Lula e na luta contra o desmatamento. Isso cria condições mais favoráveis ainda para para um aumento da cooperação internacional.

O Brasil está sendo visto com outros olhos pela Europa?

Com certeza. Está sendo visto como um desses países no mundo que tem capacidade de gerar diálogo, que tem capacidade para contribuir para uma resposta colaborativa aos grandes desafios mundiais. Acho que isso faz com que a França esteja sempre por perto, porque uma coisa que motiva a gente é essa resposta colaborativa aos grandes desafios mundiais.

Essa reaproximação de França e Brasil pode ajudar no avanço do acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul? Ou vai ficar suspenso se Javier Milei vencer as eleições (na Argentina)?

O que posso dizer é que a integração não apenas comercial, mas de resposta a desafios globais, luta contra mudanças climáticas e proteção da biodiversidade, são coisas que temos que olhar de forma integrada. Inclusive, no contexto do acordo União Europeia-Mercosul.

Com a guerra entre Israel e o Hamas, além do conflito na Ucrânia, o papel da ONU está fragilizado. Pode ser o momento, como o Brasil defende, de rediscutir e reformar os organismos multilaterais? E como pensa a França?

A França continua comprometida com o multilateralismo. Acho que é mais um desses temas nos quais França e Brasil têm convergência. Se olharmos o multilateralismo, a situação não é exatamente negativa. Por exemplo: na parte da cooperação para o desenvolvimento, existem organismos multilaterais, houve a reconstituição dos recursos do International Development Agency e do Banco Mundial. Isso está funcionando. Portanto, nem todos os elementos do sistema multilateral têm deixado de funcionar. Mas é verdade que há um problema na segurança. Mas a gente não pode dizer que todo o multilateralismo está paralisado.

O senhor está negociando também outros acordos além do BNDES e do Basa?

Estamos em reuniões com o Ministério do Planejamento para revisar a carteira de projetos com a União para vermos quais seriam as prioridades do Brasil e as áreas de interesse para AFD para os próximos três anos. Temos espaço para aumentar nossa carteira de crédito. Também tivemos reuniões nos ministérios da Fazenda, das Relações Exteriores e com o do Desenvolvimento Social. Então, não são só Basa e BNDES, é mais abrangente.

O Brasil assumirá a presidência do G20, sediará a COP30, em 2025, e as agendas ambiental e de combate à desigualdade são prioridades. É possível termos boas expectativas?

A presidência brasileira do G20 traz boas expectativas sobre essa questão de que falamos, de compatibilizar a agenda climática com a de inclusão social. Isso é própria política do Brasil domesticamente. Traz, também, uma visão favorável para a COP30, que acontecerá 10 anos depois do Acordo de Paris. E serão também os 10 anos do acordo da definição dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e dos 10 anos da Cúpula de Adis Abeba sobre o financiamento para o desenvolvimento. 2025 é um ano importante para se fazer o prosseguimento dos três grandes acordos assinados em 2015. E será no contexto de um mundo fragmentado, com fortes tensões geopolíticas. O fato de o Brasil ser comprometido com a cooperação internacional, sediar a COP 10 anos depois de Paris, Nova York e Adis Abeba é alentador.

Qual sua avaliação sobre a situação eleitoral da Argentina?

Espero que o candidato (à presidência) que for escolhido possa fazer a coisa certa. Somos uma das poucas agências bilaterais na Argentina. Estamos lá desde 2017. Trabalhamos com o governo, com províncias, com a própria cidade e com os bancos. É um contexto complexo. Tomaram uma série de decisões, em matéria macroeconômica, muito ruins. Não foi o caso do Brasil, que desde o Plano Real acertou na matéria econômica e manteve ferramentas para acompanhamento das políticas públicas nacionais federais, como o BNDES e a Caixa. Essas instituições não existem mais na Argentina, que não tem esse arcabouço. Liberalizou, privatizou e só quer dar subsídios diretamente via governo.


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