Análise

Nas Entrelinhas: Entre o peronismo e o anarco-capitalismo

"A redemocratização da América Latina, após a derrocada dos regimes militares, produziu uma espécie de 'revanche do populismo'", avalia o colunista

O que não falta são tangos para embalar os corações argentinos na sucessão do presidente Alberto Fernández. No segundo turno, terão que escolher entre VolverVolver con la frente marchita/ Las nieves del tiempo platearon mi sien/ Sentir que es un soplo la vida/ Que veinte años no es nada (Voltar com a testa franzida/ As neves do tempo pratearam minhas têmporas/ Sentir que se é um sopro de vida/ Que vinte anos não são nada) —, clássico de Carlos Gardel e seu parceiro paulista Alfredo Le Pera, e Balada para un locoLoco! ¡Loco! ¡Loco!/ Como un acróbata demente saltaré/ sobre el abismo de tu escote/ hasta sentir que enloquecí/ tu corazón de libertad... (Louco! Louco! Louco! Como um acrobata demente saltarei/ sobre o abismo do teu decote/ até sentir que enlouqueci/ o teu coração de liberdade...), de Astor Piazzolla e o poeta uruguaio Horácio Ferrer.

Depois de ir às urnas no domingo, a Argentina está entre o passado peronista do atual ministro da Fazenda, Sergio Massa, que protagonizou uma espetacular virada eleitoral após as primárias (quando ficou em terceiro), ao obter 36% dos votos, e o inusitado anarco-capitalismo de Javier Milei, que era favorito na maioria das pesquisas e obteve 30%. A ex-ministra Patricia Bullrich, terceira força eleitoral e candidata de centro-direita, obteve 26% dos votos.

O número de eleitores que compareceram ao pleito foi o menor desde o retorno da democracia: 74%. Apesar da vantagem de Massa, a eleição continua indefinida, devido principalmente à instabilidade econômica, que deve aumentar nesses 30 dias até o segundo turno, em 19 de novembro.

A crise cambial e a inflação atormentam os argentinos há décadas. Em setembro, a inflação anual chegou a 138% e o dólar no câmbio negro ultrapassou mil pesos. O presidente Alberto Fernández, com baixíssima aprovação, sumiu da campanha eleitoral para não queimar o filme de Massa.

Entretanto, o resultado mostrou a força política do peronismo, em especial na região da Grande Buenos Aires, que reúne o maior número de eleitores do país. Na disputa para governador da província de Buenos Aires, o peronista Axel Kicillof garantiu a reeleição em primeiro turno, com 45% dos votos, e uma larga vantagem sobre os adversários.

Milei se projetou como alternativa de poder com a bandeira da dolarização da economia, mas a criação da expectativa de que venceria no primeiro turno, que foi sua tática eleitoral, acabou desconstruída pelo medo do eleitorado conservador em relação às suas propostas, entre as quais a de liberar o uso de armas. Resultado: comparado ao ex-presidente Jair Bolsonaro por seus próprios aliados e, por isso, confrontado pelos peronistas, Milei foi estigmatizado e obteve o mesmo índice de votos das primárias.

Populismo e "iliberalismo"

Entretanto, as primeiras pesquisas após o primeiro turno estão mostrando que Milei permanece no páreo. Pela primeira vez, desde o fim da ditadura militar (1976-1983), a polarização entre peronistas e liberais foi rompida. Complicado avaliar que ambos são populistas, um de esquerda e outro de direita. Como diria o filósofo Isaiah Berlin, citado pelo historiador brasileiro Alberto Aggio (Um lugar no mundo, estudos de história política latino-americana, Fundação Astrojildo Pereira/Fondazione Istituto Gramsci), "o populismo é um sapato para o qual existe um pé em algum lugar, tamanha a vulgarização do conceito".

Massa representa o centro do Partido Justicialista, mas tem o apoio de Cristina Kirchner, de centro-esquerda. O peronismo possui espectros que vão da direita à esquerda, dependendo de suas lideranças. De certa forma, sua candidatura encerra um ciclo de disputa interna no Partido Justicialista.

Qualquer que seja o resultado da eleição, o vencedor terá que negociar com o Congresso. Nesse aspecto, Milei melhorou de condição, pois conseguiu eleger 35 deputados e oito senadores. Massa, porém, acena ao centro e promete encerrar os 20 anos do modelo kirchnerista, que vivia às turras com o mercado.

Mas o que é o populismo? Segundo Aggio, o populismo emergiu num cenário de crise de liberalismo e de ascensão de massas na América Latina. Buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando os trabalhadores assalariados por meio dos direitos sociais, porém, sem rupturas violentas. Com isso, interditou a passagem clássica à modernidade pela integração plena da sociedade às estruturas políticas da democracia liberal.

A redemocratização da América Latina, após a derrocada das ditaduras militares da região, produziu uma espécie de "revanche do populismo", cuja tradução mais tosca seria o bolivarianismo de Hugo Chávez na Venezuela. A intolerância, o antipluralismo e o autoritarismo colocaram a recidiva populista no campo do regressivo político, o que, de certa forma, abriu espaço para algo muito pior: o "iliberalismo", encarnado por Bolsonaro, no Brasil, e outros líderes de extrema direita, no mundo. O anarco-capitalismo de Milei está mais para esse lado do que para o populismo.

 

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