Entrevista

'O poliamor já é uma realidade no Brasil', diz presidente de comissão na Câmara

Titular do colegiado que trata de assuntos ligados à família, o deputado Fernando Rodolfo (PL-PE) está empenhado em deliberar sobre a agenda de costumes. Esta semana, o colegiado vai debater sobre o casamento entre mais de duas pessoas e a personalidade civil do nascituro

Após aprovar o Projeto de Lei (PL) 580/2007, que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a Comissão de Previdência, Assistência Social, infância, Adolescência e Família (Cpasf) ganhou notoriedade e se tornou uma das Comissões mais polêmicas da Câmara. As pautas de costume são um dos pilares do trabalho do colegiado, que é majoritariamente conservador, e, por isso, deve continuar movimentando o Congresso nos próximos meses.

Em entrevista ao Correio, o presidente da Cpasf, deputado Fernando Rodolfo (PL-PE), afirma que o próximo tema a ser debatido pela comissão é a personalidade civil do nascituro, que entrou na pauta de votação da próxima quarta-feira (25/10), e o poliamor — união estável entre mais de duas pessoas. Em seguida, o colegiado deve discutir sobre alienação parental, aborto, terapias para conversão de orientação sexual (a chamada “cura gay”), terapia hormonal para redesignação de gênero em crianças e adolescentes, entre outros.

A comissão também está fazendo tratativas para instaurar uma CPI que investigue a aplicação de recursos públicos em programas sociais na Cracolândia, em São Paulo. Até o momento, o deputado coletou cerca de 60 assinaturas para abrir a investigação, mas precisa de mais, aproximadamente, 110. Na entrevista, o presidente da Cpasf descreveu o trabalho do grupo e detalhou as pautas polêmicas que serão tratadas pelo colegiado. Veja:

Quando assumiu a comissão, o senhor decidiu votar todos os projetos que eram de competência da Cpaf. Por que essa decisão? Não valeria a pena fazer um filtro, para não perder tempo debatendo projetos muito antigos, que não condizem com a realidade social atual?

Um projeto tem que ser votado, de qualquer jeito. Mesmo que seja para arquivar, nós temos que votar e, então, ele precisa ser pautado. Não tem como zerar uma pauta, que tem uma fila de mais de 300 projetos, sem pautar. Nosso foco é zerar a pauta e estamos trabalhando para isso. Na última reunião, por exemplo, nós aprovamos 15 projetos, é um número que dificilmente vemos em outras comissões. Não sei se consigo votar todos, porque ainda temos uma fila muito grande, mas, até o final do ano, queremos votar o máximo que conseguirmos.

Mas no caso do casamento homoafetivo, por exemplo, foi pautado um projeto de mais de 15 anos atrás, quando a realidade era completamente diferente. Não seria o caso de não pautar um projeto que muda um entendimento que assegurou um direito para a comunidade LGBTQIA+ há mais de 10 anos?

O casamento homoafetivo acontece no Brasil em função de uma jurisprudência, de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. O Congresso Nacional não fez o seu dever de casa, como deveria ter feito lá atrás e, na ausência de uma lei, o Supremo decide. Mas a decisão do Supremo pode sofrer mudança de entendimento a qualquer momento. No caso do foro privilegiado, já se discutiu, e o Supremo mudou o entendimento. (O mesmo ocorreu) na questão da prisão em segunda instância, que era um tema pacificado, assim como esse do casamento homoafetivo, mas sofreu mudança de entendimento. Então surge a necessidade de se ter uma regulamentação, na lei, do casamento homoafetivo e de tantos outros temas.

O que o senhor pensa sobre casamento homoafetivo?

Eu penso e defendo que a gente tem que ter uma lei. Se a lei vai permitir ou se vai proibir o casamento homoafetivo, não cabe a mim, tem que ser uma decisão tomada pelo colegiado. Na nossa comissão, não passou a permissão para o casamento, mas isso não quer dizer muita coisa, porque é só o primeiro passo da tramitação de um projeto. Ele ainda vai para outras comissões, pode ser votado no plenário, ainda vai para o Senado. Justamente para evitar injustiças e equívocos, o processo legislativo é longo.

Não há inconstitucionalidade nesse projeto?

A sociedade passou, nos últimos anos, por um processo de modernização, mas as leis que nós temos no Brasil são antigas. A própria Constituição precisa passar por uma atualização, porque, lá em 88, nem passava pela cabeça do legislador constituinte essa história de casamento de pessoas no mesmo sexo. Tanto é que hoje, na Constituição, ainda está escrito que casamento é entre "homem e mulher". Tem que mudar esse artigo para poder chamar esse projeto de inconstitucional. Então o projeto que a comissão votou é constitucional. Está de acordo com a Constituição. O momento é outro, a Constituição é que está atrasada nesse aspecto. A gente tem que ter uma lei no Brasil que regulamente isso, foi o que o que a comissão entendeu e apenas iniciou o processo. A opinião de 12 parlamentares, que votaram, não reflete a opinião de 513, por isso que existem esses caminhos legislativos que permitem inclusive o projeto ser votava plenário.

Foi discutida nos bastidores da Comissão a possibilidade de uma PEC para alterar o artigo 226 da Constituição (que trata sobre família)?

Existiu sim essa discussão, inclusive me lembro que o deputado Marco Feliciano (PL-SP) foi muito feliz quando ele chamou à responsabilidade todos aqueles parlamentares que defendem a causa de LGBT, que nenhum deles nunca apresentou uma PEC para mudar o artigo 226. O que a gente viu nesse debate foi, tanto de um lado quanto do outro, deputados querendo aproveitar e surfar na mídia com isso. Tinha parlamentar que chegava lá, falava e ia embora, não estava nem aí para o que estava acontecendo, queriam mesmo era fazer vídeo para o Tik Tok. Infelizmente é essa a realidade que a gente tem no parlamento. As urnas trouxeram muitos deputados youtubers, blogueiros, que fazem política pela internet, e vivem disso, da mídia. Mas, na hora de colocar a mão na massa e fazer uma PEC para mudar o artigo 226, ninguém apresentou até hoje.

Quais são os próximos projetos a serem debatidos pela Comissão?

Nós temos na comissão o projeto da identidade civil do nascituro, que é um projeto da Chris Tonietto (PL-RJ), luta muito contra essa questão do aborto. Tem, de polêmico, o do poliamor. Tem o da alienação parental, que, inclusive, o relator é o deputado Pastor Eurico (PL-PE), e tenta mudar a lei que trata sobre a alienação parental; tem de adoção de criança por casal homoafetivo. Tem muita polêmica nesta comissão. É uma comissão nova, pequena, mas que parece que juntaram todos os projetos polêmicos do mundo e jogaram aqui dentro.

O projeto da alienação parental promete ser polêmico. O que pode surgir da discussão?

A discussão sobre o projeto da alienação parental deve, sim, encontrar algumas divergências, mas não acredito que seja como foi no caso do casamento homoafetivo. Eu não vejo um texto que vai gerar tantos embates. Sei que vai ser polêmico, já estamos preparados para enfrentar alguma resistência, mas em proporção menor do que foi a outra discussão. O projeto deve ser pautado na próxima semana ou na primeira de novembro.

E em relação à “cura gay”?

Esse projeto vai ter um debate muito longo, muito tenso. Nós já sentimos isso e vem sentindo ao longo das últimas semanas, com a votação do casamento homoafetivo. Falar em retrocesso é muito ponto de vista de quem de quem está falando, ao mesmo tempo que se fala sobre retroceder, tem uma corrente que prefere dizer que é um avanço. Essa coisa da cura gay é algo que vem há muitos anos. Esse projeto vai ter um debate muito acalorado, mas, se a gente tiver tempo ainda esse ano, nós vamos pautá-lo.

Há projetos  de lei que proíbem a terapia hormonal para redesignação de gênero em crianças e adolescentes. Tem, inclusive, um Projeto de Decreto Legislativo (PDL), de autoria do senhor, que susta os efeitos de uma resolução do Conselho Nacional de Saúde que fixa 14 anos como idade mínima para iniciar esse tipo de terapia. Como avalia esse tema?

Estou pronto para enfrentar o debate. Qualquer tema que seja sensível precisa ser votado. Não é porque o tema é sensível à sociedade que a gente vai deixar dentro de uma gaveta. Minha opinião pessoal com essa questão de terapia hormonal para crianças que querem mudar de sexo, sou totalmente contra isso. Eu não vejo como encarar isso com normalidade, uma criança de 13, 14 anos querer mudar de sexo e ter o direito de fazer cirurgia, ou tratamento com hormônio. Às vezes ele não sabe o que tá fazendo. Isso seria um cheque em branco para adotarmos a cultura da criança trans no Brasil, e criança trans não existe. Então eu sou totalmente contra, e a gente vai pautar esses temas sensíveis até o final do ano.

Alguns projetos sobre aborto também constam na comissão. Dados estatísticos mostram que muitas mulheres morrem por conta disso. A saúde da mulher vai ser levada em consideração? De que forma a comissão vai debater o tema?

Nós vamos debater na comissão a Personalidade Civil do Nascituro. A saúde da mulher tem sim que ser levada em conta, mas a gente não pode usar o argumento de que o aborto tem que ser legalizado porque sendo feito em um hospital, uma clínica, com legalidade, vai preservar a mulher. A mulher vai ter uma atenção maior, mas e a vida? Nesse momento nós vamos debater a preservação da vida do nascituro. No entanto, não dá para separar esse debate da mulher. É preciso enxergar algumas possibilidades. A discussão vai contemplar a saúde da mulher e os casos que já são previstos em lei.

Pautas de costume e sobre orientação sexual parecem ter se tornado um pilar da comissão. Como ficam as pautas relacionadas à previdência?

É uma comissão que existe para isso, para discutir pautas de costume. O nome é Previdência e Assistência Social, tirando isso tem Infância, Adolescência e Família, ou seja, são três temas que reúnem, majoritariamente, pautas de costume. Eu estou designando mais relatores para mais projetos da área previdenciária, porque nós temos assuntos densos para discutir como a regulamentação profissional de categorias. Relacionado a isso, nós já aprovamos na comissão o Plano Nacional de Assistência Social; a inclusão de catadores de material reciclável como segurados especiais da Previdência; renda básica para pessoas com deficiência; o aumento de penas para crimes cometidos contra crianças e adolescentes. Muitos projetos que foram aprovados até agora são da área de previdência, da área de assistência social.

A comissão esbarra em muitos assuntos em discussão no Supremo Tribunal Federal. Como enxerga essa relação entre os Poderes?

Estamos fazendo a nossa parte. O Supremo está debatendo hoje assuntos que estão na nossa comissão, porque os projetos ficaram engavetados ao longo dos últimos anos, porque os parlamentares não fizeram o dever de casa. Então a gente está correndo contra o tempo para pautar, discutir e votar os projetos que deveriam ter sido votados lá atrás, e muitos deles, hoje, estão sendo discutidos no Supremo porque a gente aqui não tem feito nosso papel.

Qual a próxima pauta da comissão? 

O próximo projeto a ser debatido deve ser o poliamor. A gente tem, hoje, um conflito jurídico. Tem o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que proíbe os cartórios de emitirem certidão de união estável para mais de duas pessoas, e tem alguns juízes no país já autorizando os cartórios das suas comarcas a fazerem essa escritura de união estável com mais de três pessoas. Um exemplo disso aconteceu recentemente, no Rio Grande do Sul. Foi com um homem e duas mulheres, uma delas estava grávida. Uma das mulheres, que não era a gestante, é servidora do Banco do Brasil. Na própria decisão do juiz, ele disse que ela tem que ter direito a licença maternidade mesmo sem ser gestante. Esse assunto é muito complexo, mas a gente vai discutir. Inclusive, estou marcando para semana que vem já uma audiência pública, para a próxima quarta-feira, para a gente acelerar a tramitação desse tema. Na semana seguinte, pretendo marcar a primeira reunião para tentar votar sobre isso.

Por que a pressa?

Se a gente não decidir logo sobre isso, ter uma lei que diz se pode ou se não pode, daqui a pouco teremos no país casamento, união estável, com quatro, cinco pessoas. No Brasil, a nossa cultura é a monogamia, entre duas pessoas. Aí vem um juiz e autoriza três. E quando ele autoriza, eu posso dizer que no Brasil o poliamor já é uma realidade. Então, se a gente não regulamentar isso em lei, o Brasil vai virar o quê?

Quantos projetos a comissão já discutiu e deve discutir nos próximos meses?

Aqui na Câmara, essa comissão é nova. Começou este ano e muita gente não conhecia a Cpasf. A população começou a enxergar a comissão com a votação do projeto da união homoafetiva, que foi um debate muito acalorado. Quando eu assumi, a mesa diretora mandou um despacho com quase 400 projetos que estavam na comissão de Seguridade, que deixou de existir e não tinham sido votados. A gente tinha um projeto datado de 2003, ou seja, há 20 anos o projeto está engavetado aqui. Eu fui pautando, começando pelos mais antigos e chegamos nos projetos de 2007, que tinha, entre eles, esse do Clodovil, do casamento homoafetivo. Vencemos essa etapa, e agora a gente vai entrar nessas outras temáticas. A pauta de costumes desperta muita rivalidade ideológica aqui dentro da comissão.

Quais são os resultados até aqui?

A nossa comissão é a que mais aprovou projetos em 2023, mais, inclusive, do que a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) — a maior comissão maior da Casa, que recebe projeto de todas as outras. Nós aprovamos 236 proposições, sem contar com os apensados que tem cada uma delas.

Ano que vem outro deputado deve assumir a presidência da comissão. Como vai ficar o trabalho do colegiado? O senhor vai continuar no grupo como membro?

Devo continuar porque é uma comissão que tem muita relação com meu posicionamento como deputado. Eu sou conservador, sou da bancada evangélica, e muitos dos assuntos que são debatidos na comissão estão relacionados com a minha forma de pensar como parlamentar. Quem vai assumir a presidência deve ser alguém do PL (Partido Liberal) e, por isso, tudo vai estar alinhado, encaminhado.

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