Os Poderes da República, ainda que devam ser harmônicos, nem sempre estiveram em plena concordância. Nos últimos anos, as relações foram marcadas por episódios de tensão entre o Judiciário e o Executivo, com os constantes ataques do então presidente Jair Bolsonaro (PL) a ministros do Supremo Tribunal Federal, e, mais recentemente, o Congresso, que marca posição contrária a recentes decisões da Corte, como o que considerou inconstitucional a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas.
No último desdobramento, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, em menos de 1 minuto, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que limita as decisões monocráticas no Supremo, ou seja, aquelas proferidas em caráter temporário por um único ministro.
"Os Três Poderes são guardiões da Constituição e a sua guarda começa pela harmonia e independência preconizadas na Carta de 1988. Os Poderes devem ser freios e contrapesos. Um Poder não pode ser a bigorna e o outro o martelo", declarou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), na solenidade comemorativa dos 35 anos da Constituição, na semana passada.
A advogada constitucionalista Vera Chemim explica que enquanto o Poder Legislativo "cria e edita leis" e representa "a vontade da maioria", dado que os parlamentares são escolhidos por voto popular, o Judiciário é um "poder apolítico e técnico, uma vez que os seus membros só são admitidos por meio de concurso público ou indicação política".
"O Poder Judiciário não pode 'legislar', sob risco de exercer o chamado ativismo judicial, que corresponde à situação em que um magistrado acaba criando uma norma e invadindo a seara do Poder Legislativo", comenta a advogada criminalista.
"São exemplos dessa natureza as decisões do STF correspondentes à legalidade do aborto de feto anencefálico, o nepotismo, greve na administração pública, assim como outros casos recentes em que o Tribunal tem tomado decisões no âmbito de temas em julgamento, que extrapolam suas competências constitucionais. Esses temas remetem ao ativismo judicial, porque não havia legislação à época para dar suporte àquelas decisões do STF", completa.
A advogada avalia que a Corte Suprema tem ultrapassado suas atribuições, e um fator importante para isso é a "conjuntura de polarização político-ideológica, capaz de gerar instabilidade política e social". "O STF tem sofrido fortes pressões que acabam resultando em uma sutil politização daquela Corte, até por conta da sua excessiva exposição à mídia."
Participação popular
Os direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988 apontam para um país democrático e inclusivo, referência no mundo todo. O Artigo nº 3 dos Princípios Fundamentais preconiza uma sociedade "livre, justa e solidária", que tem entre seus objetivos "erradicar a pobreza e a marginalização", "reduzir as desigualdades sociais", e promover "o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Na seção da Ordem Social, define-se como obrigação do Estado o acesso à saúde e à educação, e assegurar direitos de indígenas e quilombolas, por exemplo.
O texto — considerado progressista e socialmente avançado — foi fruto de uma grande união popular, segundo parlamentares que integraram a Assembleia Nacional Constituinte. "A nossa Constituição garantiu tantos direitos, ela foi tão avançada, que a direita não se conformou até hoje. Só foi possível avançar tanto em direitos constitucionais e econômicos porque ela foi filha do movimento popular Diretas Já, que abalou a ditadura brasileira e possibilitou a eleição de Tancredo Neves. Ele se elegeu com esse compromisso (estabelecer a democracia), que foi cumprido por José Sarney", relembra o ex-deputado federal Domingos Leonelli, que integrou, com os deputados Caó de Oliveira e Benedita da Silva (PT-RJ), entre outros, o grupo que incluiu na Carta o conceito de crime inafiançável e imprescritível para o racismo.
Para a deputada federal e constituinte Lídice da Mata (PSB-BA), o processo foi de "intensa participação popular". "Não só as bancadas, como o povo brasileiro, apresentaram através das diversas organizações 122 emendas populares. Foram direitos conquistados duramente, com intensa participação popular", comenta da Mata.
"Nós conseguimos avançar, com amplos setores, e trazer melhorias sociais, políticas, econômicas e trabalhistas ao povo brasileiro" orgulha-se a ex-deputada federal e também integrante da Constituinte Moema São Thiago.
O marco do SUS
Um dos avanços mais destacados por praticamente todos que acompanharam a elaboração da Carta Magna é a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Considerado uma das políticas públicas mais abrangentes do mundo, o SUS foi implementado em 1990, dois anos depois da promulgação da Constituição. Hoje, a população brasileira, com mais de 200 milhões de habitantes, usufrui de atendimento médico e hospitalar, assistência social e psicológica, entre muitos outros serviços ofertados gratuitamente pela rede pública de saúde. "A pandemia de covid-19 tornou claríssimo que é impossível o Brasil dispensar um serviço como o SUS", acrescenta Leonelli.
Outro avanço citado é a ampliação de direitos fundamentais às mulheres. "A luta das mulheres foi consagrada, nós saímos de um atraso político em que a mulher não tinha participação na família, o homem sempre foi o chefe, para ter direitos iguais. A mulher pôde amamentar seus filhos mesmo estando presa, teve a licença-maternidade aumentada, assim como foi criada a licença-paternidade. No caso do combate à violência, (a Carta Magna) também deu embasamento para que, hoje, nós tenhamos a Lei Maria da Penha", reflete São Thiago. A simples frase "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações perante a Constituição (Artigo nº 5) foi revolucionária".
Na construção desse consenso, a chamada bancada do batom, formada por mulheres constituintes, foi quem assegurou a presença desses direitos na Constituição. À época, a Assembleia Nacional Constituinte contava com 26 mulheres, que representavam 5% do total do Parlamento. Atualmente, na Câmara dos Deputados, a bancada feminina tem 90 deputadas — 17,5% dos parlamentares da Casa. Leis como a 12.034/2009 e a 13.165/2015 buscam incentivar mais candidaturas de mulheres nas eleições, bem como obrigar a destinação de verba dos partidos para propaganda eleitoral das candidatas.
De acordo com Lídice da Mata, "os direitos sociais estão consagrados na Constituição. Agora, isso não é estático. Esses direitos tinham que ser consolidados no dia a dia. Na Constituição, por exemplo, está dito que o salário deve ser igual entre homens e mulheres no exercício da mesma função. Mas isso nem sempre se realiza, então, neste ano, foi sancionado pelo presidente da República um projeto de lei voltado para a equidade salarial. Muita coisa está pendente de regulamentação, o que não foi feito nesses 35 anos", alerta a parlamentar.
Reforma Agrária
Um dos principais exemplos de obrigação do Estado que ainda dependem de regulamentação infraconstitucional é a reforma agrária. "Nessa questão, nós não vencemos completamente, embora tivéssemos aprovado a função social da terra, que nunca foi observada de fato nem regulamentada. A Constituinte não conseguiu estabelecer um avanço real na reforma agrária", relembra Leonelli.
A questão da posse e propriedade da terra está diretamente ligada às demandas dos povos indígenas. Em setembro, o STF julgou inconstitucional a tese do Marco Temporal. O recurso previa que somente terras ocupadas até a data da promulgação da Constituição seriam objeto de demarcação pelo Estado. No entanto, o STF rejeitou a tese com base no Artigo nº 231 da Carta Magna, que reconhece aos indígenas "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". O trecho foi lido no voto contrário da ministra Cármen Lúcia ao marco temporal.
Lídice Da Mata considera que as várias emendas à Constituição, aprovadas nos últimos anos, não cumprem papel efetivo de aperfeiçoar e ampliar direitos sociais. "Muitas buscam cessar direitos conquistados, como a emenda da Reforma da Previdência", comentou.
Leonelli relembra que a Carta Magna precisa ser defendida pela população frente aos ataques que vem recebendo de setores mais conservadores da sociedade. "Temos que defender a atual Constituição e saber que ela está sendo atacada pelos seus méritos, não pelos seus defeitos", concluiu.
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