HISTÓRIA E SOCIEDADE

História nas páginas: repórteres do Correio relembram os 35 anos da Constituição

Quatro jornalistas do Correio que acompanharam a Constituinte remexem o baú das memórias para resgatar momentos emblemáticos daquela cobertura histórica

“Quem trair esta Constituição estará traindo a Pátria”, bradou Ulysses Guimarães no discurso de promulgação da Carta Magna, em 1988. Obviamente, as forças de direita remanescentes do antigo regime militar, que organizaram o chamado Centrão durante a Constituinte, nunca concordaram com esses termos e tentam, a todo momento, aprovar emendas constitucionais para alterá-la, muitas delas de natureza casuística e corporativista.

Não se pode dizer que a comemoração deste aniversário de 35 anos da Constituição seja uma data redonda. Entretanto, a efeméride ganhou muita relevância em razão da tentativa de golpe de 8 de janeiro e da resiliência que nossas instituições republicanas demonstraram durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro (PL), que tudo fez para transformar nosso Estado Democrático de Direito num regime iliberal. Não à toa, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) estão dedicando aos constituintes uma semana de solenidades, homenagens e debates. Foram esses Poderes, principalmente, que garantiram a posse e o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Os constituintes de 1988 buscaram construir uma democracia ampliada, com direitos sociais assegurados, e o regime de Três Poderes independentes e harmônicos. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário, para isso, têm o compromisso constitucional de atuar de modo a que as leis sejam aplicadas em benefício da maioria da população. Entretanto, nem sempre foi assim.

Nestes 35 anos, a Constituição se submeteu a uma revisão e a quase 130 emendas. Uma delas foi a da reeleição, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Entretanto, a grande contradição estabelecida pelos constituintes foi adotar o presidencialismo quando tudo caminhava para o parlamentarismo. A razão principal foi a ambição do deputado Ulysses Guimarães (PMDB), presidente da Constituinte, e do senador Mario Covas, líder do PMDB, que pretendiam disputar a Presidência da República.


Quando houve a primeira eleição para a Presidência, após 30 anos, em 15 de novembro de 1989, 22 candidatos se inscreveram, entre eles, Ulysses Guimarães (PMDB), Aureliano Chaves (PFL), Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Leonel Brizola (PDT), Mário Covas (PSDB), Paulo Maluf (PDS), Roberto Freire (PCB), Guilherme Afif Domingos (PL) e Ronaldo Caiado (PSD). A novidade foi a candidatura do ex-governador de Alagoas Fernando Collor de Melo, que concorreu por um partido pequeno e quase desconhecido, o PRN.

Uma semana depois da eleição, o TSE anunciou o resultado oficial do primeiro turno. Fernando Collor obteve 20,6 milhões de votos (28% do total) e Lula conseguiu 11,6 milhões de votos (16% do total). Os dois, portanto, disputaram o segundo turno cerca de um mês depois. Collor foi eleito com 35.089.998 votos (53% dos votos válidos). Lula obteve 31.076.364 votos (47% dos válidos). Desde então, estabeleceu-se uma disputa de poder entre o Executivo e o Legislativo, que já resultou em dois impeachments.

Há 20 anos, os brasileiros foram às urnas em plebiscito nacional, por determinação constitucional, para escolher se viveríamos em uma república ou uma monarquia, e se teríamos o presidencialismo ou o parlamentarismo como sistema de governo. O plebiscito ocorreu no dia 21 de abril de 1993, que manteve o Brasil um país republicano e presidencialista. A saída foi o chamado presidencialismo de coalizão, que proporciona um equilíbrio precário entre os dois Poderes e parece ter se esgotado com as emendas parlamentares impositivas ao Orçamento.

Construção da democracia

Rosane Garcia

O Congresso tornou-se um espaço congestionado. Representantes de grupos dos diferentes matizes ideológicos e de todos os cantos do país, carregados de demandas específicas e coletivas, agitaram o Parlamento. À época, eu trabalhava em outro jornal e fui pautada para cobrir os debates nas comissões da reforma agrária e das questões indígenas. Quando em vez, passava pela comissão que tratava dos direitos dos negros no país, que caminhavam para ser a maioria da população — algo preocupante e não bem-visto pela elite nacional.

Mas eu tinha que focar minha atenção nas questões agrárias e indígenas. Os conflitos e as injustiças ocorridas contra os trabalhadores rurais e os povos originários provocavam indignação nos setores mais progressistas da sociedade. A expansão do latifúndio e a violência contra camponeses eram inconcebíveis. Em oposição à pauta campesina estava a União Democrática Ruralista (UDR) — arranjo agregador dos conservadores formado na Constituinte.

Na questão indígena e quilombola, os constituintes mantiveram o reconhecimento de que as comunidades têm direito aos territórios que ocupam. Um dos avanços foi estabelecer o prazo de cinco anos para a demarcação das áreas. Mas a Constituição guarda instrumentos que podem eliminar as profundas desigualdades no campo e nas cidades. Hoje, ainda que os cidadãos não usufruam de todos os seus direitos, vivemos em regime democrático, que permite cobrar do Estado, apontar suas falhas, sem o risco de sermos jogados em calabouço.

Denise Rothemburg

Se é possível tirar algo de positivo da pandemia de covid-19 que assustou o mundo e matou milhões de pessoas foi o fato de as pessoas atentarem para a importância do Sistema único de Saúde (SUS), que prevê assistência integral de saúde a todos os brasileiros. E ele existe graças ao texto constitucional que fez aniversário no último dia 5 de outubro. Chegar a esse modelo que garantiu atendimento à população durante a pandemia foi um longo parto. Começou em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em que os sanitaristas deflagraram o movimento para que houvesse um sistema capaz de atender a todos os brasileiros. Por sugestão do então deputado Eduardo Jorge, à época do PT de São Paulo, o documento da 8ª conferência serviu de roteiro para o texto constitucional. 

Até o final da década de 1980, apenas os trabalhadores com carteira assinada tinham direito ao atendimento, feito via Inamps, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. O movimento dos sanitaristas, que chegou ao seu auge na Constituinte, garantiu o Artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. No papel, estava feito.

A regulamentação viria dois anos depois, com a Lei da Saúde, que teve como relator o atual vice-presidente, Geraldo Alckmin. “Na Constituinte, criamos o sistema de seguridade, mas, logo na sessão seguinte, regulamentamos. Foi um longo caminho até aqui”, disse o vice-presidente.

Vinicius Doria

No início de 1987, em uma reunião de pauta da TV em que trabalhava, meu chefe avisou: “Você está no time que vai cobrir a Assembleia Nacional Constituinte”. Menino de tudo, como se dizia por essas bandas do Planalto Central, meu diploma de jornalista pela UnB não tinha sequer completado um ano. Parecia uma pauta rotineira. Não era. O chefe avisou: “Prepare-se, você vai testemunhar um dos momentos mais importantes da história brasileira”. Ele não errou.

De repente, aquele Congresso que eu conhecia apenas pelas sessões maçantes e discursos modorrentos foi ocupado nos meses seguintes por gente como a gente. E por gente que o Brasil não tratava como gente. Era um vai e vem intenso de sindicalistas, operários, fazendeiros, empresários, banqueiros e bancários, estudantes e professores, pretos, indígenas, crianças e idosos.

Entre tantas lembranças, duas me marcaram profundamente: a presença de centenas de crianças e adolescentes do Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua que apresentaram uma emenda ao texto — o país tinha 45 milhões vivendo em condições sub-humanas; 12 milhões sem lar (mais da metade vivendo nas ruas); 7 milhões com alguma deficiência física; e 10 milhões fora da escola — e o discurso do líder indígena Ailton Krenak. Enquanto falava no Plenário, Krenak ia pintando o rosto de preto para denunciar as agressões que os povos indígenas sofriam. Imagens pungentes e definitivas pelo direito de existir como cidadãos. Direito que a Constituição assegurou.

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