Um texto que estava no bloco de notas do celular da delegada da Polícia Federal (PF), Marília Ferreira Alencar, ex-subsecretária de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Distrito Federal, entregue pela Apple à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de 8 de janeiro, ao qual o Correio teve acesso, aponta que o ex-ministro da Justiça Anderson Torres planejava acusar o PT de compra de votos e mirava em ações no Nordeste.
Escrito em primeira pessoa, a braço-direito de Torres no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) detalhou, no texto, reuniões que participou, com a presença do ex-ministro e dos diretores da PF e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), para falar sobre ações policiais em estados onde o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva obteve mais votos no primeiro turno das eleições presidenciais de 2022. “Houve várias reuniões no mês de outubro, em que o ministro [Torres] pediu muito empenho e atenção às eleições de 2022”, escreveu Marília.
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Em um dos encontros, “em que estavam os representantes da PF, PRF, Seopi (Secretaria de Operações Integradas do ministério), Min. (sic)”, houve o pedido “de integração entre as forças e que se colocassem mais de 70% nas ruas”. “Disse que tinha informações de que estavam rodando Brasil afora milhões de reais em compra de votos, que estava recebendo muitos vídeos e notícias sobre isso, e que as polícias tinham que atuar mais para impedir tais crimes, especialmente a PF.”
O texto do bloco de notas — o qual a Apple não precisa a data, mas garante ser do período entre 31 de dezembro de 2021 e 18 de agosto de 2023 — alega que “havia uma preocupação do Ministro com o Nordeste e ele falava muito na Bahia, pois havia visto no mapa, com o planejamento do primeiro turno, que havia muito pouca distribuição de equipes no interior da Bahia”.
Lula obteve mais de 72% dos votos válidos no estado. “Desde antes do primeiro turno, a DINT (Diretoria de Inteligência) recebia dezenas de vídeos e postagens de pessoas, a maioria delas fake news, sobre compra de votos e ligação do PT com facções criminosas. Toda notícia ou informe que chegava, tentavamos fazer a confirmação, pedindo o BO ou consultando o centro de inteligência respectivo. Então, algo que estava arraigado ali na SEOPI era essa relação do PT com compra de votos, e sempre comentávamos sobre isso.”
“Por isso, na conversa do grupo, eu comentei sobre alguns lugares em que o Lula havia ganhado e que precisava ser reforçado, diante da existência de informes de compra de votos nesses locais e da preocupação sempre externada pelo Ministro”, detalhou Marília.
Intenção de ligar o PT às facções criminosas
O texto aponta, ainda, que “havia uma certa pressão para que eu fizesse um relatório que indicasse a relação do PT com facções criminosas, pois havia alguns indicativos disso, mas não fizemos porque não havia comprovação”.
Marília escreveu também ter percebido que “o Márcio (Nunes, ex-diretor geral da PF) não queria cumprir a determinação dele [Torres], e acabou não cumprindo, pois os planejamentos não foram seguidos”.
Por conta disso, segundo a delegada, Torres chegou a comentar que, caso Bolsonaro fosse reeleito, trocaria o diretor-geral da Polícia Federal, porque, apesar de “gostar muito do Márcio”, o ministro considerava que ele “não era uma pessoa muito firme para aquele momento”.
Por outro lado, o texto de Marília não detalha a atuação da PRF na trama, mas a intenção de focar em ações policiais no Nordeste, com aumento do efetivo, especialmente na Bahia, coincide com as acusações feitas contra a corporação, de tentar obstruir as eleições com blitze realizadas na região. Anderson Torres, inclusive, chegou a viajar à Bahia dias antes do segundo turno.
Com essa descoberta, o parecer da relatora, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), na CPMI, deve mirar no ex-diretor da PRF, Silvinei Vasques, e nas operações no Nordeste, no segundo turno das eleições do ano passado, segundo fontes da base do governo que conversaram com o Correio.
Marília chegou a ser convocada a depor na comissão no dia 12 de setembro, mas um habeas corpus concedido pelo ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), desobrigou a delegada da PF de comparecer.