Familiares de vítimas da ditadura militar, que ocorreu no Brasil entre 1964 e 1985, cobram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela retomada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). O comitê busca encontrar desaparecidos e devolver às famílias os restos mortais daqueles que nunca tiveram um enterro digno. Desde o início do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o grupo pressiona pela volta da comissão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), que investiga os crimes ocorridos neste período.
"O desaparecimento é uma forma de manter contínua a tortura dos familiares e amigos de desaparecidos políticos", desabafou Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, ex-deputado federal torturado e morto pelo regime militar, em 1971. Até hoje os restos mortais do político não foram encontrados. A professora do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) era parte da CEMDP até o último dia de existência da comissão, em dezembro de 2022. De acordo com ela, o período do governo de Jair Bolsonaro (PL) "foi terrível" para o grupo, pois os membros do governo eram "pessoas que naturalizavam a eliminação definitiva de pessoas opositoras ao governo e nos acusavam de vitimização".
Vera ressalta que, à época em que foi extinta, a comissão analisava pedidos de reconhecimento de mortos e desaparecidos políticos e tentava mudar atestados de óbito que constasse que a pessoa fora vítima de violência do Estado.
Em junho, o grupo articulado para a volta da comissão protocolou um pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI) perguntando à Casa Civil qual era a situação da análise dos documentos naquele momento. Em julho, a pasta respondeu o pedido dos familiares afirmando que "todos os documentos eram considerados preparatórios" e que, por isso, "o acesso aos autos" era "restrito" e seria disponibilizado somente quando estivesse pronto.
A comissão está próxima de ser reativada pelo atual governo, mas há percalços. O Ministério da Defesa liberou o texto de retorno na última quarta-feira. Ao Correio, a pasta afirmou que o documento passou por análise de equipe técnica, que não encontrou nenhum "impedimento jurídico para reativação do grupo". O texto, que passou também pela pasta da Justiça, retornou, então, ao MDHC.
"Não entendi o fato de a minuta do decreto (de retomada), elaborada pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, ter sido enviada para parecer do Ministério da Defesa. Quais as razões e argumentos?", indagou Diva Santana, também integrante da CEMDP. Ela é, ainda, diretora do grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, e parente do casal Dinaelza Santana Coqueiro e Vandick Reidner Pereira Coqueiro, desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia, em 1974.
O procedimento usual, que chegou a ser realizado em março deste ano, seria que a minuta saísse da pasta de Direitos Humanos e passasse pela Casa Civil para, assim, restabelecer a comissão por meio de decreto presidencial.
Um dos principais fatos apontados pelas famílias de desaparecidos para a demora na retomada da comissão é a tensão do governo federal com os militares. "Acabou de sair o resultado da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou a tentativa de golpe de Estado, em 8 de janeiro. Está todo mundo pedindo o indiciamento de militares", comentou Vera. Ela explica como funcionava a relação do grupo com as Forças Armadas. "Durante os 26 anos de funcionamento da comissão nunca houve tensão com os militares, mesmo porque sempre houve representantes no grupo."
"Para mim não fecha a conta esse argumento de que vai se criar mais desgaste com as Forças Armadas. Falando especialmente da atuação da comissão, trata-se de um movimento que não é de judicialização das graves violações de direitos humanos ocorridas na ditadura", afirmou Leo Alves, diretor-executivo da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, e neto de Mário Alves, desaparecido político em 1970. Ele vê a passagem do documento pela Defesa com maus olhos. "Isso mostrou como a tutela militar ainda é muito evidente em nosso país."
A percepção de que o entrave está, de fato, no momento político que o governo federal enfrenta também é notada pelo parlamento. "Tendo em conta o nível de polarização política, instabilidade e até de ameaça de golpe, o governo Lula tem optado pela prudência de não enfrentar determinados temas sensíveis para as Forças Armadas. Só que isso não pode inviabilizar a ação necessária para a democracia. Estou do lado daqueles que têm cobrado do governo uma ação mais incisiva", comentou o deputado federal Tarcísio Motta (PSol-RJ).
De acordo com ele, que também é historiador, é necessário fazer uma "desbolsonarização do Estado", já que, principalmente no último governo, houve momentos em que os militares "cumpriram papeis que não lhes cabiam". "Esse processo de militarização da vida, do cotidiano, leva a uma dificuldade de fazer um acerto com o passado, e é muito ruim para a nossa democracia", apontou o deputado. Ele acredita que essa demora decorre de uma característica histórica do Brasil, de sempre tentar evitar conflitos. "Há uma espécie de 'medo' dos agentes públicos de mexer nessa situação. Só que isso varre para debaixo do tapete acertos de conta que precisam ser feitos", declarou.
Para Diva, há uma decepção muito grande com o atual governo federal. "O presidente Lula recebeu as Avós da Praça de Maio, certamente em atenção à luta delas por justiça pelos desaparecidos na Argentina. Os familiares do Brasil por inúmeras vezes solicitaram audiência ao presidente Lula e não obtivemos respostas", reclamou. Em ato realizado em 30 de agosto, os familiares reuniram-se em frente ao Palácio do Planalto tentando chamar a atenção com cruzes, cartazes e camisetas estampadas com o rosto dos desaparecidos políticos. Os membros mais antigos do grupo comentam que, em gestões anteriores do petista, esse ato era efetivo e eles eram convidados a entrar no prédio e conversar pessoalmente com Lula — o que não ocorreu dessa vez.
"Vejo o governo com muitas limitações em relação a esse tema, considerando que, segundo a constituição cidadã, ele é o chefe maior da nação, tem competência, credibilidade e respeito, e é sensível aos sofrimentos do povo brasileiro", avaliou a diretora do grupo Tortura Nunca Mais.
A principal questão, segundo Vera Paiva, é entender por que o governo federal deu prioridade para o retorno da Comissão da Anistia, ainda em janeiro, e não para o da CEMDP. Apesar de similares, a primeira analisa os pedidos de quem estava sendo perseguido politicamente e foi considerado criminoso na época da ditadura militar. Já a segunda busca reencontrar os desaparecidos e reconhecê-los, para trabalhar, assim, a memória individual e coletiva.
"A CEMDP tem muito mais ressonância e importância com o que acontece hoje, que é a continuidade da tortura, dos assassinatos, além de desaparecimentos forçados e políticos a serviço de negócios e interesses de grandes mineradoras. O caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, é um dos mais importantes. Já a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, na Amazônia, quase virou caso de desaparecidos. Não virou porque rapidamente se prendeu e conseguiu a confissão de quem fez aquilo. E foi no modo que a ditadura fez com os políticos, que é esquartejar, despejar os restos mortais para ninguém achar o corpo", pontuou a professora de psicologia.
Materialidade da perda
"As pessoas acham que queremos a volta da comissão porque teria indenização, mas o dinheiro não é o que move a família. O que a família quer é ter um túmulo, ter um lugar pra ir", explicou Vera. Ela ainda afirma que, ao menos o seu pai, Rubens Paiva, possui o busto na Praça Lamartine Babo, no Rio de Janeiro, em frente ao Quartel do 1º Batalhão de Polícia do Exército, onde foi torturado e morto.
"Não temos tempo a perder, nossos familiares estão ficando idosos, minha mãe está com 75 anos. Muitos estão morrendo sem ver o mínimo de justiça", desabafou Leo Alves, neto de Mário Alves.
A psicóloga Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, conhecida como Dodora, estuda o luto e a memória, e também foi presa política no período de repressão. "A questão dos desaparecidos políticos é uma situação inconclusa, sem resposta. A elaboração parece impossível porque o processamento do luto requer uma materialidade dessa perda", afirmou. Ela comenta que esse é o motivo pelo qual "as famílias pedem informação" e que o "Estado tem o dever de responder", já que foi o responsável, lá atrás.
Para além do individual, a questão também é coletiva. "Temos que continuar trabalhando por essa questão da memória na sociedade. "No Brasil, especialmente, o trabalho da memória sempre foi muito tímido. Temos grupos, militantes, mas não há comprometimento de uma parcela maior da sociedade, muito menos de determinados governos", acrescentou Soraia Ansara, doutora em psicologia social pela PUC-SP e professora do mestrado de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP). De acordo com ela, o não reconhecimento do passado pode fazer com que "a violência se perpetue na sociedade".
"Essa comissão tem que ser reinstalada desde já, não tem tempo bom para ela ser reinstalada", reforçou Leo. Agora, mais próximo do fim do processo, já há alguns nomes indicados para participar do grupo. Diva deve representar os familiares; Vera, a sociedade civil; e Eugênia Augusta Fávero assume a presidência — essa era a composição do grupo quando foi extinto por Bolsonaro. O representante do Ministério Público Federal, Ivan Marques, também deve retornar para reconstituir a comissão. Buscando a participação de mais jovens na luta, a representante parlamentar da comissão deve ser Natália Bonavides (PT-RN).
De mão em mão
Ao Correio, o Ministério dos Direitos Humanos garantiu que deu parecer favorável ao retorno da comissão, nos primeiros meses do ano, após a análise "administrativa e jurídica" na Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade, e também da Consultoria Jurídica da pasta. O texto de aprovação foi, então, enviado, em março, à Casa Civil e à AGU para análise, com uma proposta de decreto presidencial prevendo o retorno do grupo.
Em entrevista no início de outubro, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, sinalizou que 25 de outubro — conhecido como o Dia da Democracia, por conta da morte do jornalista Vladimir Herzog — poderia marcar o tão esperado retorno da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Não foi o caso. O texto estava, até então, nas mãos do Ministério da Defesa.
Em nota enviada à reportagem, o Ministério dos Direitos Humanos confirmou ter recebido o parecer da Defesa e do Ministério da Justiça e que ele "será tramitado para a Casa Civil dar seguimento ao processo".
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