Cinco parlamentares que estavam no mandato em 1988 e ajudaram a escrever e a promulgar a Constituição — do total de 559 constituintes — ocupam cadeiras na atual legislatura do Congresso Nacional. São três deputados, Aécio Neves (PSDB-MG), Benedita da Silva (PT-RJ) e Lídice da Mata (PSB-BA), e dois senadores, Paulo Paim (PT-RS) e Renan Calheiros (MDB-AL).
Em comum entre os remanescentes daquele período, e que seguem no Congresso Nacional, está o discurso da efetividade das previsões constitucionais e a certeza de que o texto requer atualizações.
Para a deputada Lídice da Mata, que está no seu quarto mandato na Câmara, um dos capítulos mais debatidos foi o referente à propriedade da terra, a reforma agrária, que ainda segue como questão mal resolvida no Brasil.
"Até hoje é razão de luta, de perda de vidas no campo e nas cidades dos trabalhadores pobres desse país. A função social da terra não está cumprida", disse a deputada.
Bancada do batom
Outro ponto destacado pela ex-constituinte foi o avanço nos direitos e garantias individuais — "muito precisa ser feito ainda" e citou as conquistas das mulheres. "Éramos apenas 29 deputadas, a bancada do batom, e diziam que não podíamos ter direito à licença-maternidade de 120 dias, que todas mulheres seriam demitidas. Nenhum patrão iria empregar uma mulher por causa disso. E a licença-paternidade também foi aprovada. Hoje, estamos lutando para ampliar esses dois direitos", disse a deputada.
Benedita da Silva também citou a reforma agrária como algo ainda não conquistado no país, mas lembra que a Constituição contemplou o reconhecimento das áreas remanescentes dos quilombos. E também entende que há necessidade de uma revisão no texto, apesar de tantas emendas inseridas ao longo desses 35 anos.
"Com tantas e tantas emendas, 129 ao todo, a nossa Constituição ainda precisa ser revista e ganhar as ruas. Temos muitos direitos dos cidadãos e das cidadãs ainda a serem conquistados. De qualquer maneira, é preciso enaltecer o que temos. A Constituição não foi feita dentro de quatro paredes do Congresso Nacional. Foi elaborada nas tribos, nos quilombos, nas empresas", avalia a petista, que está no seu sexto mandato como deputada federal.
Neto do ex-presidente Tancredo Neves e ex-presidente da Câmara, Aécio Neves (PSDB-MG) discursou na sessão solene, fez elogios ao texto, mas, adversário que é do PT, criticou a oposição do partido de Lula à Carta e o voto contrário da legenda do atual presidente da República a Constituição. Ao Correio, o tucano repetiu seus antigos colegas que ainda seguem com mandato e falou da necessidade de alterações.
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"Foram os anos mais sublimes da democracia. Destaco os direitos e as garantias individuais e o fortalecimento do Ministério Público. Se falava que a Constituição duraria seis meses apenas, um ano no máximo. Está aí até hoje. Recebeu muitas emendas e vai receber mais. São novos tempos, que precisam de regramento. Temos agora inteligência artificial, big techs. O texto vai precisar se atualizado", disse Aécio.
A força da Constituição na reação à tentativa de golpe no 8 de janeiro também foi citada pelos ex-constituintes como um ponto alto do texto, que define que o Brasil é um Estado Democrático de Direito.
"Aquilo que ocorreu no 8 de janeiro foi uma ameaça à democracia, a esse estado de direito. Não aconteceu por acaso. Não foi gente que estava à toa na rua ou que foi para lá protestar sem intenção alguma. Foi uma conspiração pensada. Tentaram violar a Constituição, que foi mais forte", disse Lídice da Mata.
Duas longas trajetórias
Apenas dois senadores da atual legislatura estão no rol dos autores da Constituição. Ambos entraram na política para combater a ditadura militar e, na Assembleia Nacional Constituinte, atuaram do mesmo lado — dos progressistas — na elaboração do documento que assegurou direitos que mudaram a vida dos brasileiros e a forma da sociedade se relacionar entre si e com o Estado brasileiro.
Um deles veio para Brasília em 1996, eleito pela primeira vez, e daqui não saiu mais. Gaúcho de Caxias do Sul, Paulo Paim (PT-RS), hoje com 73 anos, emenda há 35 anos uma sequência ininterrupta de mandatos parlamentares e é reconhecido como uma das vozes mais ativas da defesa da classe trabalhadora e das causas sociais. Ao lançar o olhar para aqueles tempos efervescentes do país, Paim só lamenta que a Constituição, ao longo dessas três décadas e meia de vida, só foi alterada para limitar direitos, nunca para ampliá-los.
Autor da proposta da redução da jornada de trabalho de 48 para 40 horas, Paim negociou muito para que, no fim, o texto fosse aprovado com a carga semanal de 44 horas. "Fiquei conhecido como o deputado de uma nota só, a da redução da jornada. Saía pelo Salão Verde com a carteira de trabalho na mão", diverte-se Paim.
Mas o epíteto não faz justiça ao trabalho do constituinte gaúcho. Com o baiano Caó de Oliveira (1941-2018) e a carioca Benedita Silva, participou intensamente da luta contra o preconceito para inscrever, na Carta Magna, o racismo como crime inafiançável e imprescritível. "É uma Constituição moderna que antecipou debates que até hoje estão aí, mobilizando a sociedade brasileira", disse o senador.
Paim faz questão de reverenciar alguns nomes que, para ele, foram decisivos no trabalho da Constituinte, como Ulisses Guimarães e Mário Covas. Também reconheceu a importância de lideranças conservadoras, que deram suporte político ao regime militar, mas que atuaram pela construção de consensos, como o ex-ministro Jarbas Passarinho. "Ele foi um negociador confiável e correto, principalmente no diálogo com o Centrão (bloco de centro-direita criado na Constituinte que tinha como base a forte União Democrática Ruralista — UDR, braço político do agronegócio da época). Ele dizia 'Paim, isso aqui não dá. Paim, isso dá para negociar'. Juntos, conseguimos aprovar a função social da terra, que foi a base legal para a reforma agrária."
Outro colega citado foi o conterrâneo Alceni Guerra, que chegou a ser alvo de chacota ao apresentar e defender a proposta da licença-paternidade. "Ninguém falava disso, só de licença-maternidade", lembra o senador. "É uma Constituição contemporânea, que veio para ficar. No 8 de janeiro (quando as sedes dos Poderes foram depredadas), a Constituição prevaleceu", disse ele, antes de relembrar a célebre frase de Ulisses Guimarães na cerimônia de promulgação da Constituição, em 1988: "Traidor da Constituição é traidor da Pátria".
Voto aos 16
O alagoano Renan Calheiros também cita o contundente discurso de Ulisses como marco daquele momento histórico. "Tenho na memória, como todos os brasileiros, aquela imagem forte, de celebração e festa na promulgação (da Constituição) com o pronunciamento do Presidente Ulysses Guimarães. Um discurso tão vigoroso, denso e pontual que vários de seus conteúdos são reproduzidos ainda hoje e muitos os citam de memória. Foi um aprendizado de Brasil inigualável", relembra o senador.
Depois da Assembleia Nacional Constituinte, Renan foi ministro de Estado e presidente do Senado Federal, tornando-se um dos políticos mais influentes do país. Ao folhear a Constituição do país, 35 anos depois, o senador destacou o espírito cidadão do texto. "Sem dúvida, foi o retorno da democracia, da institucionalidade, das liberdades, da cidadania e dos resgates socioeconômicos proporcionados pelos capítulos dos Direitos e Garantias, da Organização dos Poderes e o vital capítulo da Ordem Social", comentou. É dele, por exemplo, a autoria da proposta que instituiu o voto facultativo para jovens entre 16 e 18 anos de idade. "Vim de uma geração que pediu nas ruas uma Assembleia Constituinte livre e soberana."
Para o parlamentar alagoano, o Poder Legislativo, "humilhado e amordaçado no passado, recuperou prerrogativas dos parlamentos democráticos e salvaguardas indispensáveis ao exercício dos mandatos". Mas os principais avanços, para ele, foram consolidados no amplo rol de direitos sociais estabelecidos de forma definitiva, que asseguraram, por exemplo, saúde e educação gratuitas e universais.
Ao Correio, confidenciou que guarda "muitas memórias inesquecíveis, eternizadas", mas não vê o texto aprovado 35 anos atrás como imutável. "A sociedade muda numa velocidade absurda a partir da digitalização. As leis precisam mudar para acompanhar essa dinâmica irrefreável", avaliou Renan.
Para ele, a Constituição sempre foi "permeável às mudanças". "Essa flexibilidade para oxigenar as normas legais é a maior contribuição das constituições democráticas que sempre estão prontas para mudanças, aprimoramentos e, nesse caso, para modernizações que o futuro impõe. Apenas os estados totalitários são herméticos e refratários a mudanças e aperfeiçoamentos. A maior contribuição dela é se reconhecer imperfeita ao ponto de ser refeita diariamente", concluiu o senador.
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