O Brasil enfrenta uma crise na segurança pública com o aumento da guerra entre as facções criminosas que comandam o crime organizado no país. No Maranhão, os conflitos entre os grupos têm gerado uma onda de violência e aterrorizado os moradores da periferia de São Luís.
No Rio Grande do Norte, ataques contra prédios públicos, queima de veículos e tiroteios marcaram o cenário de violência do estado nos últimos anos. Em São Paulo, as operações deflagradas na Baixada Santista estão resultando em dezenas de mortes. No Rio de Janeiro, as disputas territoriais entre grupos rivais vitimizam há anos — e cotidianamente — crianças, adultos e idosos inocentes.
Na Bahia, o número de mortos em operações policiais nas últimas semanas passa de 60, e os confrontos entre as facções continuam. É uma guerra sem fim.
Diante desse cenário de aumento do crime organizado que tem uma movimentação financeira que ultrapassa milhões de reais todos os meses, o governo lança, hoje, um programa nacional para combater essa escalada.
O objetivo é articular estratégias para que as forças federais possam atuar em convergência com a segurança pública dos estados em diversas frentes, como proteção de fronteiras, fiscalização de rodovias, portos e aeroportos, combate a organizações que dominam o sistema penitenciário e em políticas públicas voltadas às comunidades dominadas por quadrilhas do tráfico de drogas e de milícias paramilitares nas grandes cidades.
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O pacote é uma resposta do governo ao aumento dos casos de vítimas em operações policiais de repressão às quadrilhas que atuam, principalmente, no Rio, na Bahia e em São Paulo.
Como esse enfrentamento cotidiano é de responsabilidade dos governos estaduais, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) quer ampliar o suporte às parcerias entre as polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF) no âmbito das Forças Integradas de Combate ao Crime Organizado (Ficco) — forças-tarefa em que as corporações federais atuam de forma coordenada com os órgãos de segurança pública dos estados, como Polícia Civil, Polícia Militar e Sistema Penitenciário.
O 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que o assassinato em 2016 do narcotraficante Jorge Rafaat, apontado como "patrão" do crime organizado na Linha Internacional entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã (MS), na fronteira entre Brasil e Paraguai, marcou a intensificação da guerra entre as facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), ambas originadas da Região Sudeste que, ao longo dos anos 2000, foram expandindo o domínio para outras regiões do Brasil.
Após a morte de Rafaat, os conflitos e a disputa por expansão de territórios entre PCC e CV se intensificaram, o que pode ser percebido nos conflitos no sistema prisional de diversos estados e nas ações fora dos presídios que ocasionaram diversas mortes violentas nas ruas.
Para o cientista político e especialista em segurança pública Antônio Flávio Testa, "há uma indefinição da capacidade que o Estado tem de enfrentar o crime organizado com as suas diversas facetas". Ele pontuou que o país não tem demonstrado ter condições para enfrentar o crime organizado.
"Tudo isso aí está vindo à tona porque nós temos condições objetivas de estímulo à prática criminosa por conta de lideranças importantíssimas e da ineficiência da justiça. É importante analisar, também, a captura dos presídios brasileiros pelas grandes quadrilhas em todo o Brasil", apontou. E alertou: "Essa guerra está sendo vencida pelo crime organizado".
Investimento
Será anunciado pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, também, um reforço de R$ 250 milhões — que começaram a ser liberados aos estados em setembro — destinado às Ficco e aos Grupos de Investigações Sensíveis da PF (GISis), com o objetivo de reduzir os índices de mortes violentas intencionais e expandir a capacidade de apreensão de drogas e armas. Esses recursos se somarão aos R$ 85 milhões liberados neste ano para essa finalidade.
Outra medida em curso é a flexibilização das regras para que os governadores acessem recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, que ainda tem parado no caixa cerca de R$ 1 bilhão. "Quando assumimos, havia R$ 2,6 bilhões do Fundo Nacional parados nas contas dos estados sem execução em função de burocracias. Nós flexibilizamos a aplicação desses recursos, que podem ser usados pelas polícias Civil e Militar estaduais", disse ao Correio o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli.
Ele defendeu o investimento maciço em inteligência e operações integradas para combater as grandes organizações criminosas que atuam em âmbito nacional. "O enfrentamento ao crime organizado não se dá no varejo", ressaltou. "É preciso uma ação planejada, integrada, envolvendo os entes federativos, com foco em questões como fronteiras, portos e aeroportos, e asfixia financeira dessas organizações, em articulação com o sistema financeiro, com o Coaf (Conselho de Controle da Atividade Financeira), com a Febraban (Federação Brasileira dos Bancos). É um conjunto de iniciativas para enfrentar e asfixiar essas organizações criminosas, na famosa linha do 'siga o dinheiro'."
Ministro enaltece ações do governo e rebate 'especialistas'
Com a política de segurança pública do governo federal sob questionamento, por conta de crises nessa área como a que ocorre na Bahia, o ministro da Justiça, Flávio Dino, listou, ontem, nas redes sociais, uma série de medidas que sua pasta está tomando para diminuir a criminalidade no país, como redução de armas em circulação e punição de maus policiais. O ministro afimou ser preciso ter maior atenção com sugestões "dos que se declaram especialistas" na área.
Para Dino, a ideia de "federalizar" a segurança pública é absurda. "Claro que não concordamos com teses que nos parecem absurdas, a exemplo da que busca federalizar toda a segurança pública em um país do tamanho do Brasil. Ademais, seria inconstitucional. Segundo tais especialistas, o governo federal pode ultrapassar suas competências constitucionais e impor políticas aos governadores, embora ninguém diga como isso funcionaria", afirmou o ministro, que defende um 'diálogo federativo'.
Segundo ele, outra 'tese estranha' é a de culpar as polícias pelos avanços das organizações criminosas nas últimas décadas. Hoje, é o que ocorre na Bahia, estado governado pelo PT há 16 anos. "É injusto e não é construtivo. Como fazer segurança pública sem as polícias? Ou contra as polícias? No atual momento, com o rumo certo que temos adotado, o desafio demanda pés no chão, serenidade e tempo."
Polarização
Na sexta-feira, Capelli se encontrou com o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), para discutir a ação da Ficco no estado. Após a reunião, o governador anunciou que está sendo preparada "uma grande atuação" policial contra o tráfico nas principais comunidades, que deve contar, inclusive, com a Força Nacional.
A parceria na área da segurança entre um governador que apoiou a reeleição de Jair Bolsonaro à Presidência e o atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se repete em outras unidades da Federação, como Goiás e Minas Gerais, mas há exceções. O Correio apurou que o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, foi o único que ainda não participou de nenhuma reunião com autoridades da pasta da Justiça, em Brasília. Derrite é ex-policial militar e ligado à família de Bolsonaro. Segundo fontes do ministério, a recusa do secretário em dialogar com o atual governo "é meramente ideológica", apesar de o governador, Tarcísio de Freitas, fazer questão de manter canais de diálogo com o governo federal e de a PM paulista ter participado, recentemente, de um seminário sobre uso de câmeras pelos policiais.
O Ministério da Justiça tentou encontrar alternativas para incorporar as Forças Armadas no esforço de combate ao crime organizado, mas as conversas com a pasta da Defesa não prosperaram por falta de base legal para essa colaboração. Os ministros Flávio Dino (Justiça) e José Múcio Monteiro (Defesa) chegaram a se reunir, no início da semana passada, para discutir o plano, mas a conversa não teve seguimento.
A lei só permite que militares das Três Forças atuem na segurança pública em situações excepcionais, como nas missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), deflagradas com ordem expressa do presidente da República. O problema é que, segundo um interlocutor do Ministério da Defesa, "as GLOs foram demonizadas" a partir dos atos de 8 de janeiro por causa da suposta intenção do governo anterior de lançar mão da medida para provocar o cancelamento ou a anulação das eleições presidenciais.
"Polícia ainda é analógica"
Na avaliação de Renato Sérgio de Lima, coordenador científico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), "o Estado funciona num quadro normativo que precisa ser modernizado e ele não foi ajustado para lidar com os desafios da criminalidade contemporânea das mais diferentes ordens". O coordenador ressalta que o crime organizado já atua no ambiente digital, e as polícias ainda não estão preparadas para combater esse tipo de ação.
"O crime organizado se adaptou, foi para o universo híbrido, até mesmo como subproduto do universo de digitalização que a pandemia (da covid-19) acelerou. Isso é muito revelador do desafio que é fazer segurança pública porque, quando a gente olha para as polícias, elas estão preparadas para fazer a atuação analógica. Você pega as polícias civis e vê que o efetivo está envelhecido, foi perdendo pessoal. Muitas vezes, só grupos especializados se capacitam para crimes cibernéticos, a maior parte dos profissionais das polícias civis não têm essa formação."
Lima avalia que é fundamental haver uma integração entre as forças de segurança pública, especialmente em seus órgãos de inteligência, os quais devem investir em tecnologia para coletar dados sobre o crime organizado, buscando não só a repressão, mas a desarticulação do crime organizado de forma contínua e com metas, com orçamento com objetivos.
"Esses criminosos podem ser presos numa investigação. Isso exige investimentos em equipes para que isso seja feito com antecedência. Se eu consigo planejar e prender esses criminosos, não necessariamente no enfrentamento de todos juntos, eu não coloco a população em risco. Não tem que tratar o criminoso como vítima da sociedade. Podemos atuar frente ao crime, mas é preciso preservar a vida da população. Pode ser feito um trabalho de inteligência e prender um a um se eu tiver os mesmos drones identificando quem são, onde estão, e onde eu posso pegá-los. Isso, sim, é um processo sério de segurança pública."
Em concordância com Renato Sérgio de Lima, o cientista político Antônio Flávio Testa defende que "é difícil enfrentar o crime organizado sem que haja uma ação integrada". "O sistema precisa ser totalmente reformulado no Brasil, assim como o sistema judiciário no que se refere à questão penal, e, se puder, voltar a discutir aquela ideia da criação do Ministério da Segurança Pública, como já existiu há alguns anos", ressalta.
*Estagiária Isabel Dourado sob a supervisão de Andreia Castro
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