A deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) protocolou, na quarta-feira (20/9), um projeto de lei sobre o "reconhecimento do direito territorial originário dos povos indígenas" desde antes da chegada dos portugueses no Brasil. O documento também proíbe a fixação de qualquer marco temporal para balizar os direitos às terras indígenas. Por fim, o PL fixa "o marco temporal do genocídio indígena", a partir de 1500.
A proposta se contrapõe à tese que estabelece que os indígenas só poderiam reivindicam as terras comprovadamente ocupadas em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. A restrição das demarcações está em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) e na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Segundo a parlamentar, os povos indígenas são os primeiros ocupantes das terras que hoje correspondem ao Brasil. Ela também afirma que o genocídio contra os povos originários começou com a chegada dos portugueses no território nacional, em 1500. Célia também lembra que a demarcação e proteção das terras indígenas é competência da União e que os territórios são fundamentais para a reprodução física e cultural dos povos originários, segundo os usos, costumes e tradições deles.
"O PL é também uma resposta à malfadada tese do marco temporal, aprovada pela Câmara dos Deputados no âmbito do PL nº 490/2007, que agora tramita no Senado Federal como PL nº 2903/2023, a qual, na prática, irá inviabilizar a demarcação de terras indígenas no país, ameaçando, inclusive, aquelas já demarcadas", explica a deputada.
Para Célia Xakriabá, a tese que restringe a demarcação de territórios "muda toda a história". "De 5 de outubro de 1988 para trás não há mais história, e sim a partir daquele dia. Ele (o marco temporal) inverte a lógica também: parece que quem chegou nas caravelas foram os indígenas. Reposiciona as pessoas, coloca o colonizador como dono da terra e o indígena como invasor", pontua.
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"O marco temporal nega a presença do indígena neste território, nega as práticas de sobrevivência, nega a nossa ciência, nega o canto, a pintura, a culinária. Nega que esses milênios todos os Povos Indígenas estiveram presentes e cuidando da biodiversidade, então ele nega a contribuição do indígena para o planeta e nega a contribuição do indígena na história do Brasil, que para nós é Pindorama", acrescenta a parlamentar.
Na justificativa do projeto, Célia argumenta que a proposta do marco temporal viola os direitos dos povos indígenas, assim como os princípios da Constituição e de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos.
"Importante constar que o marco temporal também ignora o fato de que muitas comunidades indígenas foram expulsas de suas terras, desde a invasão dos colonizadores, especialmente durante as ditaduras militares, e só conseguiram retornar após a data estabelecida pela tese, o que pode resultar em graves violações dos Direitos Humanos desses povos", destaca a deputada.
Marco temporal no STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) está a um voto de formar maioria contra o marco temporal. O placar está 5x2. Votaram contra a tese os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli.
Apenas os magistrados Nunes Marques e André se manifestaram favoráveis a estabelecer a Constituição como ponto de partida para demarcação de territórios. O julgamento será retomado nesta quinta-feira (21/9), a partir das 14h. Ainda faltam votar os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e a presidente da Corte, Rosa Weber.
Há algumas divergências entre os magistrados que se manifestaram contrários ao marco. O ministro Alexandre de Moraes seguiu um "meio-termo" e apresentou uma tese que pressupõe que proprietários rurais poderiam receber indenização do Estado pela terra nua, diante da desapropriação para demarcação, além da compensação de áreas de ocupação tradicional por outras equivalentes. Esses aspectos foram avaliados negativamente pelos povos originários.
Após diálogo e pressão da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e de outras lideranças indígenas, os ministros Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso apresentaram posicionamentos com aspectos considerados menos prejudiciais aos direitos dos povos originários. Na perspectiva de ambos, a indenização não deve ser pelas terras em si, mas sim pelo "ato danoso praticado pelo Estado".
Ao Correio, o advogado Rafael Modesto, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), avalia que a natureza da indenização proposta por Zanin e Barroso é "constitucionalmente adequada".
"Poderia resolver a situação, porque extrai ou joga a discussão das indenizações para procedimento próprio, retira da demarcação. Essa discussão pode acontecer depois ou a margem do processo demarcatório. Não é a demarcação que cria o direito indenizatório, mas o contrário, é a titulação de terras sabidamente indígenas a terceiros pelo estado federado ou pela União que cria expectativa do direito de alguém", pontua o advogado.
Já o doutor em direito constitucional Rubens Beçak avalia que as indenizações possam ser uma "solução" para o caso. "Ou seja, não se deixa de aprovar uma delimitação maior de terras aos povos originários, mas se fixa uma ponte para o outro lado, justamente, para o setor do agronegócio e produtores rurais, que se sentem atingidos pela eventual desapropriação de suas terras", defende o professor da Universidade de São Paulo (USP).
Defensores do marco alegam que a tese garantiria segurança jurídica e mais espaço para atividades econômicas do agronegócio. Por outro lado, lideranças indígenas e ambientalistas afirmam que além de dificultar o processo demarcatório, essa medida libera a exploração econômica dos territórios tradicionais.
No Senado
Na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a análise do projeto sobre o marco temporal foi adiado para a próxima quarta-feira (28/9), após pedido de vista da senadora Eliziane Gama (PSD-MA). Na quarta-feira (20/9), o senador relator Marcos Rogério (PL-RO) fez a leitura do parecer favorável à tese.
"Com sua aprovação, finalmente o Congresso Nacional trará segurança e paz às populações indígenas e não indígenas, especialmente do campo. Não se pode aceitar que, 35 anos após a entrada em vigor da Constituição, ainda haja celeuma sobre a qualificação de determinada terra como indígena, gerando riscos à subsistência e à incolumidade física de famílias inteiras", disse.
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