Após o Senado aprovar, por 43 votos a 21, o Projeto de Lei 2903/2023, que estabelece a data da promulgação da Constituição como marco temporal para demarcação de terras indígenas, os povos originários esperam que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vete integralmente a proposta. O chefe do Executivo tem a possibilidade de sancionar, vetar apenas trechos ou o PL inteiro. Mesmo com a possibilidade do Congresso Nacional derrubar o veto presidencial, entidades ligadas aos povos indígenas defendem a necessidade do posicionamento contrário de Lula, como uma maneira de demonstrar que o marco temporal é rejeitado por dois Poderes de República e que o entendimento do Congresso está na contramão. Na última quinta-feira (21/9), o STF declarou a proposta como inconstitucional.
"Se o Congresso continuar insistindo na tese, os outros dois Poderes o afastaram, isso é um passo importante no cenário político. O veto do projeto de lei tem que ser integral. Houve uma invasão da competência do Supremo, que é responsável por interpretar as leis. O Congresso, por meio do PL, está interpretando o texto constitucional e dizendo que tem marco temporal, quando o STF já disse que não tem. O projeto é plenamente inconstitucional", avalia o advogado Rafael Modesto, que defende o povo Xokleng — etnia que esteve no centro do julgamento do Supremo sobre demarcação de terras indígenas.
- Na contramão do STF, Senado aprova projeto do marco temporal
- Marco temporal: STF decide que ocupante de boa-fé deverá ser indenizado
Entretanto, para além do marco temporal, O PL aprovado pelo Congresso Nacional apresenta outros pontos considerados prejudiciais aos povos originários. A proposta prevê, por exemplo, a possibilidade de contato forçado com povos isolados e a instalação de empreendimentos dentro de terras indígenas. "Tudo isso sem necessidade de consulta prévia às comunidades ou à Funai", pontua a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, que se uniu ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pelo veto integral do presidente Lula.
Ao Correio, o coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, afirmou que as estratégias políticas e jurídicas contra a efetivação do projeto de lei já estão sendo desenhadas. "O PL é extremamente prejudicial para os povos indígenas. Você permitir empreendimentos em terras indígenas sem fazer um debate qualificado e ouvir os povos originários é bizarro. A Casa Legislativa mostra que ela usa todo o seu aparato para fazer legislações inconstitucionais e que ferem direitos humanos", ressaltou Maurício.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou, nas redes sociais, que a decisão do Congresso Nacional também vai na contramão de tendências internacionais de proteção da natureza, combate às mudanças climáticas e defesa dos povos tradicionais. Após o Supremo derrubar a tese do marco temporal por 9 votos a dois, o alto comissário de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Volker Turk, classificou a decisão como “muito encorajadora” e uma maneira de superar as "injustiças históricas".
"Limitar a demarcação dessa forma teria consequências extremamente graves, incluindo impedir que essas comunidades retornassem às terras das quais haviam sido expulsas e desfrutassem dos direitos humanos associados. Também teria perpetuado e agravado injustiças históricas sofridas pelos povos indígenas do Brasil", afirmou.
Impactos
Em agosto, o Ministério dos Povos Indígenas elaborou uma nota técnica apontando as "inconstitucionalidades" do projeto de lei aprovado pelo Congresso. Segundo a pasta, além de inviabilizar as demarcações, a proposta atenta contra a autonomia dos povos indígenas, o usufruto exclusivo e o desenvolvimento sustentável dos territórios. "Submeter as parcelas territoriais já regularizadas e reconhecidas a projetos de desenvolvimento não leva em consideração a autodeterminação dos povos indígenas", destaca o Ministério.
"De igual modo, forçar o contato com os povos indígenas que vivem em isolamento voluntário, bem como flexibilizar a legislação vigente para facilitar a implementação de práticas que ferem os usos, costumes e tradições dos povos indígenas são proposições anacrônicas do ponto de vista da política indigenista, da ética e da moral. Tal expediente normativo se anuncia de forma deplorável e se configura como uma atualização do genocídio e do esbulho dos territórios indígenas, marcas indeléveis da colonização", acrescenta.
Ainda segundo a pasta, os direitos indígenas não devem ser vistos como obstáculos ao desenvolvimento do país, pois defendê-los é uma medida fundamental que contribui até mesmo para a preservação da biodiversidade do Brasil — fator condicionante para investimentos internacionais. "O PL 2903/2023, visa transformar as terras indígenas em objetos de mercantilização, afeta a organização social dos povos indígenas e suas relações sagradas com o território, compromete a vida de todos nós diante da tragédia climática anunciada que anda de mãos dadas com o referido projeto, bem como contraria os compromissos assumidos pelo Brasil com o Acordo de Paris e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o que poderá acarretar, inclusive, na perda de investimentos internacionais", frisa a pasta.
Em conversa com o Correio, o advogado Rafael Modesto explica que a permissão de atividades de exploração econômica em territórios causaria impactos negativos ao cotidiano e também ao futuro dos povos indígenas. "Na produção de transgênicos, por exemplo, é necessário quantidade imensa de agroquímicos que poluem rios, os mananciais, as florestas. Esses lugares são sagrados, para a reprodução física e cultural", cita.
Povos isolados
O Observatório dos Povos Isolados e de Recente Contato também se posicionou contrário ao PL, alertando que a proposta gera "risco de genocídio" de povos originários. Há pelo menos 114 povos indígenas isolados no Brasil. A política de não contato com esses povos garante, entre outras coisas, que não estejam expostos a doenças que eles têm baixa imunidade. "Por causa das consequências historicamente genocidas do contato forçado, o Brasil abandonou essa prática em 1987, numa mudança que foi internacionalmente pioneira. Desde o estabelecimento da política de não contato, é proibida toda e qualquer ação ou projeto desenvolvimentista em território de indígenas em isolamento, portanto, o contato forçado nos casos de suposto interesse público”, diz o Observatório.
"Há inúmeros casos, tal como do povo Panará, contatado e violentado em 1975, no contexto da construção da BR-163 (Cuiabá-Santarém); dos Waimiri Atroari, contatados após o uso de bombas pelo Exército brasileiro durante a construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista); do povo Matis, no oeste do Amazonas, cuja redução populacional do pós contato quase os leva ao completo extermínio, no contexto de construção de trecho da rodovia Perimetral Norte em meados da década de 70; dos diferentes grupos locais Awá no Maranhão, contatados e resgatados ao longo das década de 1970 e 1980 em trechos de floresta que restaram em região devastada pela construção da ferrovia Carajás”, exemplifica a entidade.
Julgamento no STF
No STF, votaram contra o marco temporal os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Carmén Lúcia, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cristiano Zanin. Apenas os ministros Nunes Marques e André Mendonça se manifestaram favorável à proposta. A Corte também decidiu que os proprietários que ocuparam áreas indígenas de boa-fé devem receber indenizações, em um processo distinto à demarcação das terras. São consideradas ocupação por boa-fé àquelas sem histórico de renitente esbulho (usurpação) ou conflitos. As indenizações não cabem nos casos já pacificados, em terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, com ressalva aos processos judicializados em andamento.
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br