Lisboa — A discrição com que chegou à Casa do Brasil, instalada no Bairro Alto, o mais boêmio da capital portuguesa, era um contraste ante a efervescência com que Margareth Menezes costumava se apresentar nos trios elétricos de Salvador. Ali, cerca de 100 pessoas — a maioria, artistas brasileiros que optaram por viver em Portugal — esperavam ansiosos para ouvir a agora ministra da Cultura. Queriam não só saber os planos da pasta para um setor que foi atacado de todas as formas no governo passado, mas, também, relatar as dores e as delícias de se fazer arte longe da terra natal.
Voz contida, semblante contraído, sem perder a simpatia, Margareth descreveu um quadro assustador da herança que recebeu. “O cenário era de devastação”, disse. “Houve um desmonte de todas as políticas públicas de cultura, que começou ainda em 2016, depois do golpe que retirou a presidente Dilma Rousseff (do poder)”, acrescentou. O então ministério foi reduzido a uma secretaria sem importância vinculada ao Ministério do Turismo. Fundações como a Palmares estavam praticamente fechadas, assim como a Biblioteca Nacional. E, no meio de todo esse descaso, segundo ela, uma perseguição brutal contra os agentes da cultura.
“Se soubesse, nem sei (se teria aceitado essa missão)”, deixou escapar algumas vezes, entre um sorriso e um suspiro de resignação. Ela lembrou que oito meses se passaram desde que tomou posse, e muito se avançou, mas o setor da cultura do Brasil ainda está longe de uma total recuperação. O quadro de pessoal que está tocando a máquina é 20% inferior ao registrado em 2016. O Orçamento de R$ 10 bilhões, usados na reconstrução da pasta, só foi possível graças a duas leis que garantiram recursos para os artistas, a Paulo Gustavo, com R$ 3,8 bilhões, e a Aldir Blanc, com quase R$ 3 bilhões. “É o que temos para tocar a atual estrutura. Mas os resultados estão aparecendo”, ressaltou.
Margareth contou que uma das maiores vitórias da sua administração foi a adesão de 98% dos municípios à Lei Paulo Gustavo. Ou seja, praticamente todas as cidades brasileiras apresentaram projetos culturais para ser colocados em prática. “Tudo foi construído à base do diálogo, o que é fundamental. Mais de 25 mil pessoas foram envolvidas nesse processo”, frisou. Contudo, no entender da ministra, é preciso promover uma grande descentralização da cultura no Brasil. Não é mais aceitável que Rio de Janeiro e São Paulo concentrem quase todas as verbas. É preciso que todas as regiões do país sejam contempladas, inclusive, por meio dos incentivos fiscais previstos na Lei de Fomento à Cultura, ou Lei Rouanet. “Temos conversado com as empresas para que beneficiem todas as regiões”, emendou.
Livros, não armas
Lamentações à parte, a ministra se mostrou exultante quanto à determinação para que todos os empreendimentos do programa Minha Casa, Minha Vida, retomado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tenham uma biblioteca e uma sala de cinema. Com isso, a população de menor renda, atendida pelo projeto habitacional, terá à sua disposição um equipamento cultural fundamental para a inclusão. Também está sendo tocado um programa de incentivo à recuperação de todas as bibliotecas espalhadas pelo país.
O hábito da leitura, ressaltou ela, precisa ser resgatado. “A nossa política é de acesso aos livros, não a armas”, disse, numa alusão ao governo de Jair Bolsonaro, que facilitou a compra de revólveres e pistolas.
Outra meta é retomar a produção audiovisual. Para isso, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) está passando por um processo de reestruturação. O governo quer levar cinema para áreas desprovidas de aparelhos culturais. Mais: foram fixadas cotas para atender os povos originários, os negros e a população LGBTQIA+, normalmente desprezados pela estrutura que foi montada no país. “O nosso olhar é de que o Brasil é de todos os brasileiros”, afirmou Margareth, que, de Lisboa, seguiu para a Índia, onde se encontrará com ministros da Cultura do G20, o grupo que reúne as economias mais ricas e as em desenvolvimento e que será presidido pelo Brasil a partir do ano que vem.
Segundo a ministra, mesmo com todo o descaso do governo passado com a cultura, o setor movimento, somente em 2022, o equivalente a 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso, no entender dela, reforça o potencial que se tem para crescimento e geração de empregos e de renda. “Vamos, inclusive, investir muito na cultura digital. Temos de repensar a maneira de olhar a cultura no Brasil, um país muito diverso”, enfatizou. “O Brasil tem se destacado como protagonista digital, o que tem de valer para a cultura. É um dos caminhos para os avanços depois dos retrocessos dos últimos anos”, acrescentou.
Carnaval e censura
Para os artistas e incentivadores da cultura que ouviram Margareth atentamente, uma boa notícia. A ministra afirmou que o governo vai retomar as bolsas de apoio para aqueles que desejem levar espetáculos ao exterior, com o intuito de disseminar a cultura brasileira pelo mundo. Será estudado, ainda, a possibilidade de se lançar editais que contemplem artistas que vivem fora do país. “Sabemos que tem muita gente boa fora do Brasil fazendo muito pela cultura do país. E essas pessoas também precisam de apoio”, assinalou. “Mas precisamos ver como fazer isso tecnicamente”, destacou, lembrando que se reuniu com mais de 200 representantes do Itamaraty para desenvolver parcerias.
Um dos pontos de partida pode ser a Lei Rouanet, que, para a Margareth, é um exemplo de eficiência e de como se pode alocar bem os recursos oriundos de incentivos fiscais. “Fomos xingados, a Lei Rouanet atacada, mas essa legislação é tão boa que seu modelo poderia ser replicado pelo setor público. Precisamos parar de ter medo da Lei Rouanet”, disse. Ela cobrou maior participação dos artistas nos debates políticos, com presença constante no Congresso Nacional, onde será discutido o novo marco regulatório da cultura. Se empresários, banqueiros, ruralistas e outros grupos econômicos estão presentes no Legislativo para defender seus interesses, o mesmo devem fazer os artistas, acredita ela.
Em meio às lamentações e promessas, Margareth ouviu vários apelos dos presentes no encontro na Casa do Brasil. Carla Tavares, responsável por um dos principais blocos carnavalescos de Lisboa, o Viemos do Egito, lamentou as enormes dificuldades impostas pelas autoridades portuguesas para o desfile momesco. São cobradas taxas elevadíssimas e feitas proibições que dificultam replicar esse movimento cultural em Portugal. A ministra prometeu conversar com o ministro da Cultura português, Pedro Adão e Silva, para que se estabeleça um dia específico para o carnaval em Lisboa. Chefe da área cultural da embaixada do Brasil em Portugal, Gustavo Sá disse que um dos modelos a ser seguido pode ser o da celebração do Ano Novo Chinês, que foi incorporado ao calendário de eventos da capital lusitana.
Os artistas Paulo Pinto e Dori Nigro cobraram da ministra um posicionamento mais enfático do governo brasileiro contra a censura em Portugal. Eles relataram o caso do qual foram vítimas em maio deste ano, no Porto, onde vivem. Uma das salas de exposição com obras deles na Bienal de Fotografia foi fechada meia hora depois de iniciada a mostra por retratar o passado escravocrata do Conde Ferreira, que foi um dos patronos do centro hospitalar em que o evento estava sendo realizado. A censura partiu da Santa Casa de Misericórdia, que banca o hospital. A cantora Puta da Silva pediu incentivos para os artistas trans para que eles não sejam empurrados para a marginalidade, a prostituição.
“É importante ouvir o que todos tem a dizer, sobretudo nesse momento de retomada”, destacou Margareth. “Só ouvindo as pessoas é que podemos fazer um bom diagnóstico e entender o que é preciso ser feito”, complementou. Os desmandos dos últimos anos no Brasil aguçaram a ansiedade dos agentes culturais. Mas será preciso muita paciência para que a máquina “que foi depredada” volte a funcionar a pleno vapor. “Creio que, no próximo ano, teremos uma infraestrutura melhor para atender a todas as demandas”, encerrou.
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