Nas Entrelinhas

Análise: adeus, Evita! O peronismo sofreu sua derrota histórica

Foi um assombro a vitória do candidato de extrema direita Javier Milei, cujas principais propostas econômicas são dolarizar a economia e fechar o banco central da Argentina

Luiz Carlos Azedo - O musical Evita estreou na Broadway na década de 1970. Patti LuPone foi a primeira atriz a viver seu mito nos palcos. Desde então, o musical nunca deixou de ser encenado. A versão cinematográfica, lançada em 1996, protagonizada pela cantora Madonna, depois de ela própria estrelar o musical, foi outro sucesso de bilheteria. O segredo foi o fascínio que Eva Perón exerceu ao lado do marido, Juan Domingo Perón. Evita não era santa, como acreditam muitos argentinos, mas ela deu dignidade ao povo em sua trajetória política.

Perón foi presidente da Argentina entre 1946 e 1955. Em 1955, viúvo da carismática Evita, que fascinava "los cabecitas negras", não teve como resistir aos conservadores e pecuaristas. Fugiu pelo Paraguai, passou por Panamá, Venezuela e República Dominicana e se instalou em Madri, na Espanha franquista. Lá, organizou o movimento peronista, formado por facções à esquerda e à direita, que dariam origem aos grupos de extermínio do "triple A" e à guerrilha de "Los Montoneros", respectivamente.

Perón voltou ao poder de 1973 a 1974, mas frustrou a esperança de que sua presença desse algum rumo ao país. Sua viúva, Isabelita, que tentou mimetizar Evita, fez um governo desastroso. A democracia durou pouco. Os militares voltaram à Casa Rosada e massacraram a oposição; mas sucumbiram à derrota na Guerra das Malvinas, cujo objetivo era a legitimação do governo com esperanças nacionalistas. Derrotados pelos ingleses, devido à dura reação da conservadora primeira-ministra Margareth Thatcher, os chefes militares saíram de cena e acabaram condenados à prisão pela Justiça argentina.

O caos econômico e a instabilidade institucional que deixaram, porém, prejudicaram todos os governos civis que seguiram. Raul Alfonsín, da Unión Cívica Radical (UCR), de centro, renunciou meses antes do fim de seu mandato, pois convivia com uma inflação descontrolada. Fernando de la Rúa, também da UCR, foi outro que abandonou o cargo antes do fim do mandato. O Partido Justicialista, peronista, teve alguns presidentes seguidos, com mandatos curtos.

Carlos Menem, o mais longevo, e seu ministro Domingos Cavalo, da Fazenda, promoveram a dolarização da moeda argentina, que parecia ser, mas não foi, a solução para o país. Destruiu a indústria argentina. O casal Néstor e Cristina Kirchner, na Presidência, recuperou em parte a economia, mas não o suficiente para permanecer na Casa Rosada. O conservador Mauricio Macri veio na sequência; também fracassou, sua derrota resultou na volta dos peronistas.

Alberto Fernández e Cristina Kirchner, atual vice-presidente, acossada por inúmeros processos judiciais, também fracassaram. No domingo, sofreram a maior derrota da história do peronismo. O governo argentino não teve fôlego para suportar a herança financeira deteriorada do governo Macri, depois que este contratou empréstimos de US$ 44 bilhões ao FMI sob duras condições.

Desastre peronista

No domingo, a vitória do candidato de extrema direita Javier Milei, cujas principais propostas econômicas são dolarizar a economia e fechar o banco central do país, foi um assombro. O político se apresenta como "anarcocapitalista". Pretende proibir o aborto, liberar a posse de armas e admite legalizar a venda de órgãos. É um aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Como no Brasil, em 2018, a crise econômica desiludiu os argentinos com os partidos políticos. Milei também seduziu os jovens. O voto nas primárias, obrigatório para os adultos, é um ensaio geral para a eleição de 22 de outubro. As eleições argentinas já têm o favorito à Casa Rosada. Milei, porém, preocupa o mercado.

A Argentina é um dos maiores exportadores mundiais de soja, milho e carne bovina. Os títulos públicos e as negociações do acordo sobre a dívida de US$ 44 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI) subiram no telhado. A inflação argentina, que está em 115,6% em 12 meses, com juros em 118% ao ano, deve disparar. O peso argentino já sofreu uma desvalorização de quase 40% neste ano.

A dolarização da economia e o fim do câmbio negro agradam a classe média. Mas a Argentina ficaria totalmente dependente da política monetária dos Estados Unidos. O Mercosul seria inviabilizado, às vésperas de conseguir um acordo com a União Europeia. Se isso ocorrer, a política de integração regional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva será muito abalada.

O governo Fernández pode representar o fim do peronismo como alternativa de poder na Argentina. O Partido Justicialista coleciona mais um fracasso. Os ajustes fiscais e monetários exigidos pelo Fundo Monetário aprofundaram a crise. A cesta básica subiu, os salários se desvalorizaram, os ajustes cambiais desmoralizaram o peso argentino. A Argentina agora faz parte de um grupo de países denominado "standalone" (estar sozinho) pelas agências de risco, ao lado das seguintes nações: Líbano, Palestina, Botsuana, Bósnia, Trinidad-Tobago, Panamá, Jamaica, Bulgária, Malta e Ucrânia.

O ministro da Fazenda, Sergio Massa, candidato que chegou em terceiro lugar, é responsabilizado pela perda de controle da situação. Milei obteve mais de 30,5% dos votos, muito acima do previsto; o bloco da candidata conservadora Patrícia Bullrich, ex-ministra da Segurança, obteve 28%; e a coalizão governista peronista obteve 27% dos votos. Foi uma derrota anunciada, o maior desastre eleitoral dos peronistas na história.