ENTREVISTA

Edilene Lobo, 1ª mulher negra no TSE: 'Deveríamos ser todos iguais'

Nova ministra substituta, mineira de Taiobeiras, tomou posse ontem no Tribunal Superior do Eleitoral

Tomou posse ontem, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como ministra substituta, a primeira mulher negra daquela corte eleitoral. Edilene Lobo, doutora em direito processual, mestra em direito administrativo, especialista em processo penal e direito eleitoral é mineira, nascida em Taiobeiras, no Norte de Minas, 17ª filha de uma família de 20 filhos. Iniciou-se no mundo do trabalho poucos dias antes de completar 14 anos, como empacotadora num supermercado de Betim. Desde cedo, entendeu que os estudos seriam a única possibilidade para uma vida melhor.

“O direito se apresentou em minha vida, como um prolongamento de meu olhar para o lugar de onde vim, onde estão as pessoas que mais precisam de acesso aos direitos fundamentais”, afirma. Conciliando o escritório profissional com a carreira acadêmica, Edilene Lobo já cursou e lecionou em diversas universidades nacionais e internacionais. A última delas, na Sorbonne-Nouvelle Paris III, foi professora convidada do mestrado II para alunos de ciências sociais, sobre direitos políticos, eleições, democracia e milícias digitais na América Latina.

Ao refletir sobre a própria trajetória e o significado de sua nomeação, ela afirma: “Eu gostaria de dizer que para aquela menina pobre lá de Taiobeiras, e para tantas outras Edilenes por este Brasil, sonhando com oportunidades, chegar a este momento com esta missão, era algo impensável. E vejo a importância de que ela possa estar aqui, porque nós vivemos de referências. Então a primeira importância é estética: a fotografia da sociedade brasileira e a do Judiciário brasileiro precisam contar com a diversidade, até para que as meninas, as Edilenes, as Cidas, as Marias de qualquer cidade deste vasto país, possam ver que nós cabemos neste espaço”.

Ao dar posse ontem a Edilene Lobo, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, destacou a importância de do momento: “É uma honra histórica poder dar posse à primeira ministra negra da história do Brasil.”

"Temos uma longa estrada a percorrer para alcançar as promessas da Constituição democrática de 1988, de combate à discriminação em decorrência de gênero e raça, orientação sexual, religião, idade e quaisquer outras formas de exclusão. Deveríamos ser todos iguais em direitos e em obrigações".

Como a sua origem moldou a sua trajetória profissional?

Sou a 17ª filha de uma família que era muito pobre, do Norte de Minas, de Taiobeiras, com 20 filhos. O meu pai ficou viúvo com sete crianças. Logo se casou com a minha mãe, com quem teve 13 filhos. Formaram então essa família de 20 filhos biológicos, além dos vários afetivos, que ambos tiveram ao longo da vida. A certa altura, foi imprescindível que viéssemos para o centro urbano, que oferecesse condições de trabalho e condições de estudos, porque na minha cidade não havia oferta para todos do Ensino Médio, na época chamado segundo grau. A minha família migrou para Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em partes. Cheguei em 1983, antes de completar 14 anos, com mais quatro irmãos: éramos duas meninas e três rapazes, eu era a mais nova da turma. Morávamos numa região operária, com muitas carências. Depois de nós, migraram os nossos pais com os outros irmãos. Comecei a minha leitura da realidade social e do mundo da política, entre 14 e 15 anos. Foi também a época em que ingressei no mercado de trabalho. O meu primeiro emprego, tive a carteira de trabalho registrada, cinco dias antes de fazer 14 anos, foi como empacotadora num supermercado. Por uma necessidade, então, comecei a trabalhar muito cedo, ao mesmo tempo em que estudava em escolas públicas, onde conheci pessoas maravilhosas, mulheres em especial, que me estimularam a me colocar na cena, me despertaram para o mundo da política estudantil e sindical. Percebi que era fundamental compreender o mundo do direito, pois naquele momento era a minha militância, justamente para buscar a proteção principalmente das pessoas mais pobres. Então, o direito aparece na minha vida quase que como um prolongamento de meu olhar para o lugar de onde vim, o lugar onde estão as pessoas que mais precisam de acesso aos direitos fundamentais. Então foi pelo acesso à educação que alcancei voos que, infelizmente, não estão acessíveis para a maioria das pessoas com a minha origem.

A senhora é a primeira mulher negra que chega à posição de ministra substituta do TSE. Como essa representação vai importar no exercício de sua atividade?

Nós sabemos, a partir das estatísticas muito duras que extraímos do cotidiano brasileiro, que as mulheres negras estão no final da fila. São as mais pobres dentre os pobres, são as mais discriminadas dentro do gênero, têm os piores empregos e os piores salários. E quando falamos de violência doméstica, violência física em geral, quando falamos de mortalidade, esse grupo precisa ter espaço e voz a propiciar a reflexão do coletivo brasileiro sobre esta realidade. Eu gostaria de dizer para aquela menina pobre lá de Taiobeiras, e para tantas outras Edilenes por este Brasil, sonhando com oportunidades, chegar a este momento com esta missão, era algo impensável. Quando agora olho para aquela menina lá atrás, vejo a importância de que ela possa estar aqui, porque nós vivemos de referências. Então a primeira importância é estética: a fotografia da sociedade brasileira e a do Judiciário brasileiro precisam contar com a diversidade, até para que as meninas, as Edilenes, as Cidas, as Marias de qualquer cidade deste vasto país, possam ver que nós cabemos neste espaço. Por outro lado, é de importância ética, porque se uma nação como o Brasil, que a partir da Constituição de 1988 se refunda democrática, precisa contar com a representação de todas as pessoas, de todos os grupos, então é da dimensão ética que o TSE tenha uma ministra negra, pois estamos falando de pessoas negras representando mais de 50% da sociedade brasileira. Mulheres negras, em especial, mais de um quarto da população brasileira. Além disso, do ponto de vista funcional, tenho certeza de quanto mais diversa uma corte, que se coloca exatamente assim, plural, muito mais possível de acertar no desempenho de uma função tão importante que deve se voltar principalmente para as pessoas mais necessitadas. Então diria que é ético, estético e funcional. E em meu caso específico, com muito alegria, poderei oferecer um pouco do meu saber para a justiça eleitoral, porque vivi muitos anos de minha vida estudando, escrevendo, ensinando, aprendendo neste campo. Então há uma conjunção de quaro elementos importantes, que faz com que a minha chegada ao TSE seja motivo de muito orgulho, inicialmente para mim, e certamente para várias mulheres e meninas por este país, que tendo oportunidade de formação, podem oferecer a sua contribuição para a vida coletiva brasileira.

Que crítica a senhora teria hoje à presença das mulheres em geral e, em particular das mulheres negras, aos espaços de poder no país?

Embora as mulheres representem 52% da população brasileira, quando o assunto é participação em espaços públicos, nos cargos públicos, na gestão pública, somos uma minoria acachapante, que entristece. Temos hoje 29 deputadas negras eleitas (5,6% da representação total), eram 30 antes da saída de Marina Silva. No Senado da República, temos apenas uma senadora negra. Olhando para a representação feminina no Congresso Nacional, a participação de mulheres na Câmara de Deputados é de cerca de 18% e, no Senado, de apenas 16%, abaixo da média mundial e abaixo da média dos parlamentos da América Latina: o Brasil ocupa hoje, segundo dados da União Inter-Parlamentar (UIP), a 129ª posição no ranking de 186 países. No Judiciário, os dados do Conselho Nacional de Justiça de 2022 informam que magistradas negras representam apenas 7% do quadro nacional; magistradas mulheres são 38%. Nas cortes superiores, esse retrato é ainda desalentador. No TSE, é a primeira vez que teremos, com a minha nomeação, uma mulher negra como ministra substituta. Registros de 2021 do CNJ, indicam que entre os 88 ministros e ministras das cortes superiores, havia apenas uma mulher negra. Então, temos uma longa estrada a percorrer para alcançar as promessas da Constituição democrática de 1988, de combate à discriminação em decorrência de gênero e raça, orientação sexual, religião, idade e quaisquer outras formas de exclusão. Deveríamos ser todos iguais em direitos e em obrigações.

Como foi o processo de sua nomeação para o TSE? Dois homens foram nomeados para as duas primeiras vagas de ministros titulares, em que concorriam também duas mulheres, a senhora entre elas...

Eu gostaria de destacar que cada tribunal superior tem, no Brasil, uma diferente sistemática constitucional para o processo de participação e preenchimento de cadeiras. No TSE, inicialmente a lista de indicados e indicadas passa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que as aprova e encaminha ao presidente da República para a nomeação. Compus a primeira lista ao lado de outra mulher, uma colega baiana, Daniela Lima de Andrade Borges, de imensa simpatia e capacidade. E na outra lista foram aprovados pelo STF os dois professores universitários, que foram nomeados. Um deles, aliás, era ministro substituto. É muito importante que os poderes públicos, principalmente o Congresso Nacional que elabora a legislação, que atue para corrigir as injustiças históricas, garantindo espaços para o povo negro. O Brasil precisa ter regras explícitas para que haja proporção entre gênero e raça na ocupação dos espaços públicos. Então me sinto muito feliz em inaugurar essa nova realidade no TSE, sinto-me preparada para desempenhar essa função, são décadas trabalhando e estudando o direito eleitoral, o direito público em geral, assim como ensinando e aprendendo nas várias universidades pelas quais passei. Espero que cada vez mais possamos ver mais mulheres como eu ocupando esses espaços.

Ao longo de sua carreira jurídica, a senhora trabalhou no direito eleitoral também para partidos políticos. Esse trabalho interfere em sua prática como ministra se vier a julgar alguma ação?

É natural que qualquer advogado que milite no campo eleitoral vá defender o interesse de determinado partido, de determinada candidatura. E no TSE, a Constituição brasileira estabelece que a Corte se compõe por duas pessoas originárias da advocacia. Isso é para dizer que qualquer um de nós que for nomeado, em algum momento teria advogado para partidos ou candidatos. Para a Constituição isso não é problema, naturalmente, desde que se observem as regras processuais. E o modelo processual brasileiro traz regras bastante explícitas de como preservar a imparcialidade do julgador e da julgadora. A cada caso concreto é dever da magistrada e do magistrado examinar se não incorre em algum impedimento. E fico muito tranquila pois a cada caso a ser julgado vou examinar se em alguma medida, haveria risco de a minha atuação violar a imparcialidade. Se isso ocorrer, é evidente que deverei me afastar daquele julgamento especial. Tenho tranquilidade nesse ponto. E tenho certeza de que a minha vivência possibilitar até umaentrega melhor de um serviços judicial com observação próxima da realidade.

A senhora tem desenvolvido estudos no âmbito da atuação da extrema direita nas mídias digitais. Que consequências tem para os processos eleitorais, a forma como a extrema direita atua e como a ameaça deve ser enfrentada?

Tenho feito pesquisas e publicado trabalhos nesse campo. Essa movimentação do que chamo de extremismo iliberal, se dá em rota pelo mundo, não é fenômeno localizado na América Latina, potencializado pelas mídias digitais. A revolução tecnológica nesse aspecto, por meio das mídias digitais, criou ambiente de proliferação de ideias extremistas, facilitando a ascensão desse movimento iliberal. Gosto da conceituação de Oreste Massari, professor de Ciência Política da Universidade de Roma e Francisco Balaguer Caléjon, da Universidade de Granada, que assinalam tratar-se da difusão do caos, com o propósito deliberado de destruir ademocracia para a ascensão ao poder ilimitado. Nesse campo de pesquisa, pude observar que a proliferação do movimento extremista, ampliado por intermédio de algoritmos, merece muita atenção do mundo democrático e do sistema de justiça, pois é claro que o extremismo, que se vale do discurso de ódio, da exclusão, da coação, operando contra grupos minoritários, atinge em cheio as mulheres negras. Esse tipo de movimento merece toda a atenção do sistema de justiça, em especial, do sistema eleitoral, porque se valendo da desinformação, inclusive atacando a própria justiça eleitoral, tenta manipular os resultados dos pleitos. Nosmeus estudos tenho refletido sobre as possibilidades de intervir nessa realidade. Como o sistema de justiça eleitoral pode agir para oferecer alguma contenção a esse movimento, que ao excluir a diversidade, rompe com um modelo democrático minimamente aceitável.

Há um debate que permeia a Justiça Eleitoral e o Congresso Nacional relacionado à regulamentação das mídias digitais. Qual a sua avaliação em relação a esse tema?

Avalio que urge estabelecer limites ao uso das mídias digitais, quando se verificar eventual abuso, especialmente para que a liberdade de escolha do eleitorado não seja atingida pela mentira. Noutro aspecto, considerando que as mídias digitais se transformaram em veículos para disseminação da violência e do ataque â democracia, as empresas que as oferecem, as denominadas megaplataformas digitais, precisam se comprometer com a qualidade do que ali circula e atuar para combater esse tipo de disfuncionalidade. Além disso, precisam dar transparência ao desenvolvimento dos algoritmos que impactam processos eleitorais, com a difusão de informações direcionadas estrategicamente a perfis específicos.

Há uma tensão entre liberdade de expressão e eventuais limites postos a esta liberdade, que se vale dos valores democráticos para difundir o discurso de ódio e atacar as instituições democráticas?

Existe a tensão, mas antes dela, há um desafio da sobrevivência do modelo democrático. Por isso que essa tensão entre direitos é só aparente, porque é claro que o sistema democrático deve se sustentar na proteção aos direitos fundamentais, e pensando na harmonia do modelo, o direito à liberdade de expressão do indivíduo não pode ser sobreposto ao direito coletivo do povo de ter acesso à informação de qualidade.

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