ENTENDA

PL das Fake News: disputa entre artistas, jornais e plataformas pode acabar com gratuidade das redes sociais e encarecer streaming?

O setor resiste à criação de novos custos e diz que a forma como a remuneração está sendo proposta pode encarecer serviços ou inviabilizar a oferta gratuita

A Câmara dos Deputados pode votar nesta quarta-feira (9/8) um projeto de lei (PL 2370/2019) que obriga empresas digitais a remunerar artistas e empresas jornalísticas por conteúdos distribuídos em suas plataformas. Caso o texto seja aprovado, deverá ser submetido ao Senado.

A proposta fazia parte do chamado PL das Fake News (PL 2630/2020), uma tentativa mais ampla de regulação do setor que criaria também novas regras de moderação de conteúdo.

Ele acabou não sendo votado no primeiro semestre após forte reação de grandes empresas, como Google (dona do YouTube) e Meta (dona de Facebook, WhatsApp e Instagram), e de setores da sociedade que viam o risco de censura caso o PL das Fake News fosse aprovado.

A ideia de remunerar conteúdo jornalístico e artístico, porém, também enfrenta resistências, o que pode levar também ao adiamento da votação do PL 2370.

Caso seja aprovada no Congresso, a mudança impactaria redes sociais, ferramentas de busca, sites de compartilhamento de vídeos e aplicativos de streaming, como Netflix e Globoplay.

O setor resiste à criação de novos custos e diz que a forma como a remuneração está sendo proposta pode inviabilizar a oferta de serviços gratuitos como ocorre hoje ou encarecer os que já funcionam por meio de assinaturas pagas.

Já os que propõem a cobrança sobre as plataformas dizem que isso representaria uma fração pequena dos altos valores movimentados pelas empresas. E defendem a importância desse financiamento para a qualidade da produção artística e jornalística do país.

A reivindicação dos dois setores reflete mudanças trazidas pelo meio digital em seus mercados.

De um lado, jornais perderam muita receita devido à migração de uma fatia relevante da publicidade para as plataformas.

De outro, artistas do audiovisual, por exemplo, como roteiristas, diretores e intérpretes, passaram a produzir cada vez mais para plataformas de streaming, em que filmes e séries ficam indevidamente disponíveis para usuários assistirem individualmente, sem que haja uma participação desses profissionais pela exploração comercial da obra.

Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados
O projeto de lei em discussão é de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ)

O modelo difere do tradicional, em que havia pagamento de direitos autorais quando um filme ou novela era reexibido na televisão, por exemplo.

A versão final do PL 2370 que pode ser levada à votação ainda não havia sido divulgada até o fechamento desta reportagem, na noite de terça-feira.

Representantes da classe artística passaram a terça em encontros com deputados negociando o texto e buscando apoio para a aprovação da matéria.

O projeto de lei em discussão é de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e está sendo relatado pelo deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), aliado próximo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Embora seja desejo de Lira pautar o projeto, o presidente busca uma versão que reduza resistências, antes de confirmar a votação.

Segundo o jornal Folha de S.Paulo, a Rede Globo, que tem forte influência nesse debate, estaria contra a atual versão da proposta por discordar da forma como a remuneração dos direitos autorais de artistas está colocada, embora defenda a remuneração do conteúdo jornalístico pelas plataformas digitais.

Segundo a BBC News Brasil apurou, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que representa a Globo e outras TVs, quer um texto que dê mais espaço a negociações individuais com os artistas e que não possibilite a cobrança sobre obras anteriores à nova lei.

Já entidades que representam artistas, como a Gedar (roteiristas), dizem que a regulamentação proposta pelas empresas de televisão inviabilizaria a negociação coletiva defendida pelos profissionais no PL 2370.

"A gestão individual continuará sendo possível na nossa proposta, mas ela tem problemas, devido ao desequilíbrio econômico das partes contratantes", argumenta a advogada Paula Vergueiro, que representa a Gedar.

Procurada pela BBC News Brasil, a Abert não se manifestou. Já a Rede Globo encaminhou uma nota, mas não detalhou seu posicionamento.

"A Globo acompanha a posição da Abert e das entidades que representam o setor de radiodifusão nas discussões sobre a PL, tanto sobre a remuneração dos direitos autorais como do conteúdo jornalístico distribuído por plataformas digitais", disse a emissora.

"E reforça a sua defesa incondicional da liberdade de expressão e da responsabilidade que ela carrega, além de atuar firmemente no combate à desinformação", acrescentou.

Fim dos serviços gratuitos?

Hoje, o usuário no Brasil, assim como em outros países, tem acesso a serviços gratuitos em redes sociais, buscadores e plataformas de vídeo, por exemplo. Por outro lado, são expostos a conteúdo publicitário, que geram receitas para essas companhias.

A Câmara Brasileira da Economia Digital – que tem entre seus associados grandes empresas do setor, como Google, Meta, TikTok, Twitter e Amazon – apontou em nota enviada à reportagem "impactos prováveis" do PL 2370.

Segundo a instituição, a proposta "inviabiliza a oferta gratuita de conteúdo (fotos, vídeos e textos) nas plataformas, ignorando a natureza da comunicação social online, onde as pessoas compartilham ideias, experiências e informações de forma espontânea e não necessariamente com o objetivo de lucro".

A Câmara Brasileira da Economia Digital diz também que o PL 2370 "cria um modelo de arrecadação por direitos conexos dentro do streaming, sem levar em consideração contratos e arcabouços internacionais de direitos autorais já em vigor, além de trazer complexos processos de interpretação e de implementação das regras propostas".

Por fim, argumenta que a proposta também "inviabiliza a presença de conteúdos jornalísticos nas plataformas, aumentando o poder de grupos de mídia tradicionais e estabelecidos e reduzindo o espaço de negociação do jornalismo independente e de nicho e, em última instância, a variedade de conteúdo disponível online".

Procurados, os grupos Google e Meta não se manifestaram sobre o PL 2370, cujo texto ainda está em negociação.

Em abril, quando houve tentativa de votar o PL das Fake News (PL 2630/2020), as duas empresas disseram que a proposta impactaria o custo dos seus serviços.

"Na sua forma atual, a legislação (proposta no PL 2630/2020) tornaria difícil que empresas de tecnologia como a nossa continuem a oferecer o tipo de serviços gratuitos usados por milhões de pessoas e negócios no Brasil", alegou a Meta na ocasião.

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A Câmara Brasileira da Economia Digital afirmou que projeto de lei 'inviabiliza a oferta gratuita de conteúdo (fotos, vídeos e textos) nas plataformas'

Já o Google disse, naquele momento, que as novas regras sobre direitos autorais previstas no PL das Fake News impediriam usuários de conceder à empresa uma licença de direito autoral ao hospedar seu vídeo no YouTube, por exemplo, etapa obrigatória para que o conteúdo possa ser armazenado e compartilhado na plataforma.

"O PL 2630 proíbe esses tipos de licenças de duas maneiras. Uma é exigindo que todas as licenças de direitos autorais para as plataformas sejam concedidas por entidades de gestão coletiva desses direitos, o que significa que criadores e titulares de direitos não podem mais decidir por si mesmos como desejam licenciar ou distribuir os seus trabalhos", criticou o Google em abril.

"A outra forma é obrigando que todas as licenças de direitos autorais sejam pagas. Nesse sentido, as plataformas não poderiam mais oferecer serviços gratuitos de hospedagem ou compartilhamento de conteúdo sem pagar aos criadores que desejam usar seus produtos. Isso significa que poderá deixar de ser viável financeiramente para as plataformas oferecer serviços gratuitos", disse ainda a empresa.

Entidades rebatem empresas

Entidades que representam a classe artística e os jornais rebatem esses argumentos.

No setor de audiovisual, a reivindicação por novas regras de direitos autorais têm sido liderada por três associações que representam os interesses dos roteiristas (Gedar), dos diretores (DBCA) e atores (Interartis).

As três foram habilitadas pelo Ministério da Cultura a atuar em negociações coletivas para remuneração dos profissionais e buscam a aprovação da nova legislação para poder atuar na cobrança e distribuição dos valores.

A advogada Paula Vergueiro, que representa a Gedar, diz que as intenções do setor são "modestas". Os valores, porém, ainda não estão definidos e dependeriam da negociação entre os ambos os lados.

Como isso funcionaria, ainda dependeria de uma regulamentação posterior à eventual aprovação do PL.

"Ninguém quer dar uma facada a ponto de inviabilizar o próprio sistema audiovisual. A questão é que se for para pagar qualquer coisa, um real que seja, a reação (das empresas) já é enorme", disse à reportagem.

Segundo a advogada, o argumento de que as novas regras para direitos autorais impediria usuários das plataformas de postar conteúdo e firmar licenças individuais é uma "fake news grave".

A possibilidade de gestão coletiva prevista no PL 2370, ressalta Vergueiro, atinge apenas a classe artística e não será obrigatória mesmo para esses profissionais.

"Eles queriam colocar medo nas pessoas físicas que usam essas redes sociais dizendo que elas iam de repente ficar impedidas de mandar fotos, de postar vídeos, ou que teriam que pagar para as redes sociais. Nada disso é verdade. A gestão coletiva dos criadores do audiovisual não tem essa função", afirma.

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Atores e roteiristas em protesto em frente à Netflix em Los Angeles, em 21 de julho

O advogado Victor Drummond, presidente executivo da Interartis, que hoje representa três mil atores, também refuta esse argumento.

"Quase todas as versões do projeto de lei (que está em negociação) previam a possibilidade dos youtubers ou influenciadores terem as relações diretas com as plataformas. Então, a Interartis não vai cobrar nada para o Felipe Neto", disse.

Ele também nega que a proposta da classe artística vai impactar os custos para os usuários das plataformas de streaming.

"Eles dizem que isso vai onerar o usuário, que vão repassar (para o preço das assinaturas). Que nada, estamos falando de algo residual (no faturamento do setor)", crítica.

As entidades argumentam ainda que a reivindicação dos artistas brasileiros segue modelos de remuneração coletiva já previstos em outros países, como Argentina, Chile, França, Portugal e Itália.

Já nos Estados Unidos, roteiristas e atores de Hollywood estão em greve. Uma das reivindicações é o aumento das remunerações pagas por plataformas de streaming.

ANJ: 'É dever das plataformas financiar jornais'

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) também refuta as críticas de que a proposta de remuneração do setor vai inviabilizar serviços gratuitos no meio digital.

Segundo o presidente da instituição, Marcelo Rech, discursos semelhantes foram usados em outros países, como a Austrália, sem que as "ameaças" se concretizassem. Naquele país, há mais de dois anos uma lei instituiu a remuneração dos meios de comunicação, por meio de acordos com as plataformas.

"As plataformas têm usado no mundo inteiro argumentos similares, muito na linha de um blefe", critica Rech.

"Na Austrália, eles também ameaçaram deixar o país, e hoje há uma convivência completamente pacificada. Cerca de 200 milhões de dólares australianos (R$ 640 milhões) estão sendo repassados por ano à imprensa australiana com grande benefício a veículos de todos os tamanhos, que voltaram a contratar", disse ainda.

No Canadá, porém, Google e Meta têm oferecido resistência contra a implementação de uma lei que estabelece acordos para a remuneração do conteúdo jornalístico baseado nos cliques em links de notícia indicados em buscadores ou em redes sociais.

As duas empresas anunciaram que vão deixar de exibir links jornalísticos quando a nova legislação entrar em vigor, no final deste ano.

Questionado sobre o risco de isso ocorrer no Brasil, Marcelo Rech diz que a proposta brasileira não é usar o acesso a links como critério de cobrança.

A intenção, explica, é que a remuneração seja fixada em acordos a partir de critérios como: volume de conteúdo produzido, audiência alcançada e números de profissionais formalmente contratados.

Segundo Rech, um modelo similar ao australiano poderia gerar receitas para financiar cerca de 40% dos custos editoriais de empresas de jornalismo.

"A lógica da proposta de lei brasileira é que a atividade jornalística é uma atividade de combate à desinformação. Uma atividade que faz a limpeza da poluição social que é produzida por um efeito secundário das atividades das plataformas", argumenta.

"Quem tem a técnica e a capacidade para fazer a limpeza dessa poluição é o jornalismo profissional. Nada mais justo que os poluidores paguem uma parte dessa limpeza", reforça.