A Cúpula da Amazônia que será realizada em Belém na semana que vem (a partir do dia 8) deverá ser marcada não apenas pelas prováveis convergências sobre a necessidade de preservação da Amazônia, mas por divergências e uma contradição: o que fazer com as enormes reservas de petróleo já descobertas nos países da região?
De um lado, há um grupo formado por países como Venezuela e Brasil, que têm significativas reservas de petróleo e que não dão demonstrações de que pretendem deixar de explorar os recursos no curto e no médio prazo.
A esse "clube" se somam dois recém-chegados, Suriname e Guiana. Nesses países foram descobertas reservas de bilhões de barris de petróleo nos últimos oito anos e que geraram expectativa sobre um futuro ancorado nos petrodólares.
Do outro lado está a voz dissonante da Colômbia que anunciou o fim da liberação de novas licenças para explorar petróleo no início deste ano como uma forma de mover sua economia na direção da chamada transição energética - a passagem de uma matriz energética focada na queima de combustíveis fósseis para uma baseada em fontes renováveis.
Especialistas consultados pela BBC News Brasil avaliam que a cúpula poderá ser marcada por uma visível contradição: ao mesmo tempo em que países da região como o Brasil se colocam como protagonistas na luta contra a mudança climática, eles mantêm projetos que preveem a abertura de novos poços de petróleo, inclusive em áreas sensíveis como a região amazônica.
A Cúpula da Amazônia vai reunir em Belém líderes dos oito países que compõem a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (Otca), fundada em 1978: Brasil, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Venezuela, Guiana e Suriname. O evento foi convocado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
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Convergências
Dos oito países da Otca, todos os presidentes confirmaram presença, exceto Guillermo Lasso, do Equador, e Chan Santokhi, do Suriname.
Além deles, também foram convidados líderes de outros países ricos em florestas tropicais como a Indonésia, República do Congo, República Democrática do Congo, França (que tem a Guiana Francesa) e países que tradicionalmente doam recursos para a preservação da Amazônia como a Alemanha e Noruega.
O evento é visto internamente como parte dos esforços do Brasil de se cacifar como uma espécie de líder informal da região e dos países ricos em florestas tropicais em fóruns e negociações internacionais como a Assembleia Geral da ONU e a Conferência das ONU para o Clima (COP28), que será realizada nos Emirados Árabes Unidos. Segundo o governo brasileiro, as autoridades emiráticas confirmaram a ida do presidente da COP28, Sultan Ahmed al-Jaber, à Cúpula da Amazônia.
Em julho, Lula disse em entrevista que o foco da cúpula seria unificar a região em torno do destino das florestas tropicais que eles compartilham.
"O que queremos é dizer ao mundo o que vamos fazer com as nossas florestas e o que o mundo tem que fazer para nos ajudar, porque prometeram US$ 100 bilhões de dólares em 2009 e até hoje não saiu", disse Lula em relação à promessa de países desenvolvidos para financiar o combate ao desmatamento.
Em um evento sobre o clima em Paris, em junho deste ano, Lula prometeu que o Brasil atingiria a meta de desmatamento zero até 2030.
Em conversa com jornalistas da qual a BBC News Brasil participou nesta semana, diplomatas brasileiros afirmaram que há a possibilidade de que, ao fim da cúpula, os países divulguem um comunicado se comprometendo com uma meta comum para redução do desmatamento na Amazônia.
O esforço é considerado importante pela comunidade científica para limitar os efeitos das mudanças climáticas.
Outros pontos de convergência seriam a criação de mecanismos para combater o crime organizado na região e fomentar a produção de conhecimento científico sobre a Amazônia.
Divergências e contradição
Apesar disso, especialistas apontam para o que dizem ser a principal contradição da cúpula: o futuro da exploração de petróleo pelos países da região.
Esse paradoxo existe, segundo eles, porque, apesar da necessidade inequívoca de preservar as florestas, há consenso na comunidade científica internacional de que a forma mais urgente para diminuir a velocidade do aquecimento global é reduzir as emissões geradas pela queima de combustíveis fósseis.
O aquecimento global é causado a partir da emissão de gases do efeito estufa gerada por atividades humanas como o desmatamento e a queima de combustíveis fósseis, entre eles o petróleo.
Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) indicam que 74% das emissões de gases do efeito estufa foram geradas pelo setor de energia em 2021, ano da estatística mais recente.
Ainda de acordo com a agência, pouco mais da metade disso foi gerada por combustíveis como petróleo e gás natural. Diante desse peso, cientistas defendem a redução drástica na exploração desse tipo de combustível.
O último relatório do Painel Internacional para Mudança Climática (IPCC na sigla em inglês) disse que se o mundo quiser limitar o aumento da temperatura do planeta a 2ºC ou menos, será necessário deixar de queimar "enormes quantidades" de combustíveis fósseis, o que geraria impacto significativo nesse tipo de indústria.
Na outra ponta, a agricultura e as mudanças no uso do solo (desmatamento) respondem por apenas 14,9% das emissões globais de gases do efeito estufa.
"No desastre climático que nós observamos, não deveria haver exploração de petróleo em nenhum lugar do mundo", disse à BBC News Brasil o climatologista Carlos Nobre, um dos autores do quarto relatório do IPCC, de 2007, que foi premiado com o Nobel da Paz.
Segundo ele, a mensagem dos relatórios do IPCC sobre a necessidade de reduzir as emissões por queima de combustíveis fósseis deve ser ouvida por todos os países.
"Essa é uma mensagem para todo o planeta. Vale não só para os países desenvolvidos, mas para os da América do Sul, também", afirmou.
Capta de um lado, emite do outro
Para especialistas, o foco dado por países como o Brasil na necessidade de preservar a Floresta Amazônica se justifica, em parte, na medida em que a principal fonte de emissões de gases do efeito estufa do Brasil vêm do desmatamento.
Dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), mantido pela organização não-governamental Observatório do Clima, mostram que, em 2021, 49% das emissões brasileiras vieram do desmatamento, enquanto 17% foram oriundas do setor de energia.
A manutenção das florestas tropicais, além disso, é considerada primordial para o equilíbrio do clima do planeta porque elas funcionam como estoques de carbono.
Ao mesmo tempo em que absorvem carbono ao crescer, as árvores podem emitir todo esse carbono se queimadas ou desmatadas, contribuindo para o aquecimento global.
No entanto, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil alertam que, do ponto de vista global, não faria sentido apenas preservar a Amazônia, de um lado, e continuar explorando novas fontes de combustíveis fósseis do outro.
"Isso seria pior do que enxugar gelo. É como ligar o aquecedor dentro da geladeira", disse Alexandre Prado, especialista em mudanças climáticas da organização não-governamental WWF Brasil.
No Brasil, por exemplo, o governo brasileiro, que controla a Petrobras, mantém seus planos de explorar novas fontes de petróleo na área conhecida como Margem Equatorial, que compreende a região que vai da costa do Amapá ao litoral do Rio Grande do Norte.
A região vem sendo chamada de "novo pré-sal" por integrantes do governo Lula como o ministro de Minas e Energia Alexandre Silveira. Segundo o ministro, o Brasil não poderia abrir mão dessa fonte de recursos.
Em maio deste ano, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) rejeitou um pedido de licença ambiental para a perfuração de um poço de pesquisa para checar a existência ou não de petróleo em uma área localizada na bacia sedimentar da Foz do Rio Amazonas.
O Ibama alegou que o plano de segurança para eventuais vazamentos apresentado pela Petrobras não era suficiente para mitigar os riscos da atividade no local. A estatal recorreu da decisão.
Mas a posição do Brasil de explorar novas fronteiras exploratórias de petróleo não acontece de forma isolada.
Guiana e Suriname, que também participarão da Cúpula, vivem a expectativa de um verdadeiro boom gerado pela exploração de petróleo.
A Guiana, por exemplo, historicamente registrou alguns dos piores índices socioeconômicos da América do Sul. A partir de 2015, no entanto, petroleiras privadas descobriram reservas estimadas em 11 bilhões de barris de petróleo na costa do país.
A descoberta atraiu empresas do mundo todo e gerou a esperança de melhoria de vida em um dos países mais pobres do hemisfério sul.
Dados do Banco Mundial agora estimam que as rendas do petróleo deverão gerar um crescimento acima de dois dígitos na economia guianense.
Um cenário parecido é esperado no vizinho Suriname, também um dos mais pobres da América do Sul e onde também foram encontradas novas reservas de petróleo.
Isso sem falar na Venezuela. Segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opec), o país é dono das maiores reservas conhecidas de petróleo no mundo, com 303 bilhões de barris.
Em meio a uma grave crise econômica e política, o país continua apostando suas fichas na economia petroleira para contornar a situação.
Na contramão desses países, a Colômbia, comandada pelo presidente Gustavo Petro, surpreendeu a comunidade internacional no início deste ano ao anunciar que deixaria de liberar novas licenças para exploração de petróleo no país.
Em julho, durante uma reunião preparatória para a Cúpula da Amazônia, na cidade colombiana de Letícia, Petro chegou a indagar aos participantes do encontro, entre eles Lula, o que os países da região fariam com as reservas de petróleo na Amazônia.
"Vamos permitir a exploração de petróleo na Amazônia? Vamos entregar blocos para exploração? Isso é gerar riqueza?", indagou Petro ao lado de Lula, que não respondeu.
A Colômbia formalizou, durante o encontro, a proposta de que os países da região parassem novos projetos de exploração de petróleo na Amazônia.
A expectativa é de que Petro volte a tocar no assunto durante a reunião entre os chefes de estado presentes à cúpula, o que pode gerar constrangimento entre os presentes, uma vez que o assunto parece longe de um consenso.
Nesta semana, a diretora do departamento de Meio Ambiente do Ministério das Relações Internacionais, Maria Angélica Ikeda, disse que o tema do petróleo é um dos que está ainda sendo discutido pelos países antes da divulgação do comunicado conjunto, o que deverá ocorrer após a cúpula.
"A gente ainda está na negociação. Não tratamos só da questão do petróleo [...] o que posso dizer é que isso está sendo discutido", disse a diplomata.
Alerta de especialistas
É nesse contexto de apetite renovado por novas fontes de combustíveis fósseis na região que especialistas em meio ambiente alertam em direção à Cúpula da Amazônia.
"Falar em proteção da Amazônia e transição energética ao mesmo tempo em que segue com planos de expansão para a exploração petróleo, inclusive, no bioma amazônico, é uma clara contradição", afirmou diretor para a América Latina da organização não-governamental 350.org, Ilan Zugman à BBC News Brasil.
A ex-presidente do Ibama e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, também aponta nessa direção.
Ela reforça que a realidade de emissões do Brasil é diferente da média global e, especialmente, dos países desenvolvidos, onde setores como energia e indústria são preponderantes.
Por isso, segundo ela, faz sentido que o foco do Brasil esteja no combate ao desmatamento. Ela pontua, no entanto, que não é possível ignorar os impactos da exploração de novas fontes de petróleo.
"Essa exploração importa porque não adianta a gente vender esse petróleo para outros países e dizer que ele vai ser queimado em outro local. Ele vai ser queimado e os gases serão emitidos de toda forma e isso vai nos afetar como um todo", disse Suely à BBC News Brasil.
A BBC News Brasil enviou perguntas às assessorias de imprensa do Palácio do Planalto, do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério de Minas e Energia (MME).
Os dois primeiros não responderam.
O MME enviou uma nota defendendo a busca por novas "fronteiras exploratórias".
"O MME entende ser necessário o desenvolvimento de novas fronteiras exploratórias, de forma sustentável. A medida é importante para a manutenção das reservas, da segurança energética, da produção de petróleo e gás natural e a economia nacional, uma vez que petróleo é e continuará a ser uma das principais forças motrizes das economias globais por um período considerável", disse um trecho da nota.