Após o voto favorável do ministro André Mendonça, o Supremo Tribunal Federal (STF) retorna, nesta quinta-feira (31/8), o julgamento do marco temporal. A tese restringe as demarcações das terras indígenas àquelas ocupadas em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. A proposta é criticada por lideranças indígenas e ambientalistas — pois afirmam que além de dificultar o processo demarcatório, essa medida libera a exploração econômica dos territórios. Defensores do marco alegam que a tese garantiria segurança jurídica e mais espaço para atividades econômicas do agronegócio.
No STF, o placar está 2x2. Há uma ampla expectativa pelo voto do ministro Cristiano Zanin — recém indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Isso porque o magistrado votou contra pautas consideradas progressistas, como por exemplo a descriminalização do porte de maconha para consumo próprio. Ele também se manifestou contrário ao reconhecimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sobre violência policial contra os povos guarani e kaiowá no Mato Grosso do Sul.
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O que é o marco temporal?
No Suprema Corte, a análise sobre a demarcação de terras indígenas começou em 2019, com o reconhecimento da existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. A decisão tomada no julgamento do recurso terá consequência para todos os povos indígenas do país.
Em junho, o relator especial da Organização das Nações sobre Direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Calí Tzay, se manifestou pela rejeição do marco temporal. De acordo com ele, a validação da tese poderia “colocar todas as 1.393 terras indígenas sob ameaça direta”. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) defende que a tese despreza o direito dos povos originários ao território — lugar ligado à ancestralidade e identidade, onde desenvolvem e estabelecem a organização social e cultural das 305 etnias existentes no Brasil.
"A Apib aponta que a tese é inconstitucional e anti-indígena, pois viola o direito originário dos povos ao território ancestral – previsto na própria Constituição – e ignora as violências, em especial da ditadura militar, e a tutela do Estado a que os povos foram submetidos até 1988. Antes disso, inúmeros povos foram forçados a sair dos seus territórios e não tinham autonomia para lutar judicialmente por seus direitos", ressalta a Apib.
Como votaram os ministros?
O ministro Edson Fachin, relator do caso, votou contra a tese. O magistrado entendeu que a proteção constitucional das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas independe da existência de um marco temporal. Ele também pontuou que os territórios se relacionam à cultura e vida digna de um povo. “No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, destacou o ministro.
Já para o ministro Nunes Marques, que votou favorável ao marco temporal, a tese garante segurança jurídica. “Uma teoria que defenda os limites das terras a um processo permanente de recuperação de posse em razão de um esbulho ancestral naturalmente abre espaço para conflitos de toda a ordem, sem que haja horizonte de pacificação”, disse.
Terceiro a votar, o ministro Alexandre de Moraes seguiu um "meio-termo" e apresentou uma tese que pressupõe que proprietários rurais poderiam receber indenização do Estado pela terra, diante da desapropriação para demarcação. Esse aspecto do voto do magistrado foi criticado por entidades e lideranças indígenas. “O que mais nos preocupa neste voto do ministro é a indenização prévia. Isso quer dizer que as pessoas podem pagar pelo território e já adentrar nele. Isso pode gerar confusão interna entre os parentes e uma insegurança jurídica. Não se concilia direitos indígenas. Não tem meio termo para nós”, explica o coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena.
Após 90 dias parado, devido ao pedido de vista do ministro André Mendonça, o julgamento foi retomado na quarta-feira (30/8). Na retomada, o magistrado votou a favor do marco temporal, estabelecendo a Constituição como ponto de partida para demarcação de territórios. "Não se trata de negar as atrocidades cometidas, mas antes de compreender que o olhar do passado deve ter como perspectiva a possibilidade de uma reconstrução do presente e do futuro. Entendo eu que essa solução é encontrada a partir da leitura que faço do que foi o texto e a intenção do constituinte originário, de trazer uma força estabilizadora a partir da sua promulgação", afirmou o ministro.
Votação no STF e Senado
Além do STF, o marco temporal também está sendo pautado no Senado. A Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) aprovou, por 13 x 3, o Projeto de Lei (PL) 2.903/23, que estabelece a promulgação da Constituição como marco para a demarcação de terras indígenas. A matéria segue para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e depois ao Plenário da Casa. O projeto também reduz a participação da União no processo demarcatório, e inclui estados, municípios e grupos interessados, como produtores agropecuários e suas associações.
Em maio, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou, por 283 votos favoráveis e 155 contra , o PL 490, que versa sobre regras para demarcação de terras indígenas. Cabe destacar que caso o Supremo entenda que o marco temporal é inconstitucional, o projeto de lei fica suspenso e não poderá vigorar, por ser contrário à Constituição.
A Defensoria Pública da União afirmou, em nota, que a aprovação do PL representaria "grave violação de direitos humanos, contrariaria os deveres do Estado brasileiro explícitos na Convenção da ONU sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio e, também, afrontaria precedentes do Sistema Interamericano de Direitos Humanos". O órgão também frisou acerca da importância da garantia do território, para que os povos originários desenvolvam as relações sociais, políticas e econômicas, "segundo suas próprias bases culturais".
Outros pontos polêmicos
O PL sobre o marco temporal, que está em análise no Senado, tem outros pontos polêmicos. Além de estabelecer um ponto de partida para a demarcação de terras, a proposta apresenta também a possibilidade de contato com indígenas que vivem em isolamento voluntário para ações de "utilidade pública", inclusive por meio de "entidades particulares, nacionais ou internacionais", contratadas pelo Estado. Parlamentares e movimentos contrários temem que o mecanismo permita o contato forçado sob a justificativa de realização de obras e até de missões religiosas.
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