O historiador e professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis é enfático ao afirmar que o Brasil ainda conviverá com a sombra do golpismo militar enquanto a qualidade da formação dos integrantes das Forças Armadas não passarem por uma profunda reformulação. Ele observa que, no contexto de uma democracia, há a necessidade de se formular uma nova doutrina, uma das formas de se superar os resquícios da guerra fria e do “inimigo interno”. "Isso, infelizmente, nunca foi feito desde o fim da ditadura", lamenta. Fundador do PT, do qual se desligou em 2005, quando eclodiu o escândalo do mensalão, Daniel tornou-se uma referência na academia quando o assunto são as ditaduras brasileiras — seus livros Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, Ditadura e democracia no Brasil e A Ditadura que mudou o Brasil tornaram-se fundamentais para os estudiosos que pretendem entender os processos políticos do país. Segundo o professor, há em uma vasta parcela da sociedade brasileira um saudosismo do regime militar entre militares e civis que encontrou em Jair Bolsonaro um líder com grande comunicação popular, que soube se aproveitar da crise pela qual as democracias — sobretudo a brasileira — passam. "O que importou para seus seguidores não foram seus defeitos, bem conhecidos, mas sua capacidade em aglutinar e liderar uma alternativa à mal chamada Nova República, regida pela dupla PT-PSDB. Aproveitaram do desprestígio desses partidos, atingidos em cheio pela crise da democracia", observa. Leia a entrevista a seguir.
Argentina, Uruguai e Chile, por exemplo, parecem ser democracias sul-americanas mais consolidadas, pois lá os militares foram punidos e, aparentemente, hoje se restringem aos quartéis. No Brasil, quase houve um golpe de Estado em 8 de janeiro e continua havendo receio em punir exemplarmente os militares golpistas. Por quê? A Lei da Anistia tem algo a ver com isso?
Nos três países referidos, houve realmente punições de militares, mas tenho dúvida em afirmar que as democracias por lá parecem consolidadas. As democracias de nossos vizinhos são também muito instáveis. Também tenho reservas em dizer que quase houve um golpe de estado em 8 de janeiro. O que houve em Brasília foi uma insurgência popular de extrema direita, acobertada por chefes militares e com a qual as forças democráticas conciliaram por muito tempo. Agora, você tem razão em dizer que houve e ainda há receio no Brasil em punir exemplarmente os militares (e também os civis) golpistas. E isso se deve, a meu ver, ao processo de transição da ditadura à democracia em nosso país, do qual a Lei da Anistia é uma parte expressiva, mas apenas uma parte. Houve, aqui, uma transição longa, negociada, com base na conciliação e na ausência quase absoluta de uma reflexão maior sobre o período ditatorial. Os resultados estão à vista. Como dizia uma raposa política: “As consequências vêm depois”.
Segundo os grandes estudiosos da sociedade brasileira, os militares e a política estão umbilicalmente ligados. Em cinco das sete constituições que vieram no pós-Independência — inclusive na de 1988 —, é atribuído a eles algum papel político. Isso representa que o país estará sempre na iminência de um golpe?
Não diria “na iminência de um golpe”, mas sujeito às interferências dos militares. Uma longa tradição. Não esquecer, porém, que, mesmo entre os militares, na longa tradição, houve muitos chefes comprometidos com a defesa da legalidade. Por outro lado, nem sempre a interferência dos militares revestiu caráter repressivo ou regressivo. Cito dois exemplos: o tenentismo dos anos 1920, progressista e nacionalista; e a participação de militares na campanha a favor da nacionalização do petróleo.
Na ditadura militar, ficou explícita a relação entre a caserna e as forças de segurança, como as polícias, na repressão à militância de esquerda. Esta intimidade voltou à tona no governo Bolsonaro. Entre os golpistas, militares, policiais e bombeiros se misturavam nos acampamentos em frente aos quartéis e na invasão às sedes dos Três Poderes. Por que esta ligação ainda é forte?
Atribuo o fenômeno ao processo de militarização das PMs e dos bombeiros. O das PMs vem de há muito, não surgiu durante a ditadura. É preciso desmilitarizar PMs e Bombeiros. A polícia deve ser uma instituição civil e o mesmo conceito deve abranger os Bombeiros. Enquanto permanecerem militarizadas, estas instituições estarão sujeitas a distorções tentações antidemocráticas.
Em quê as milícias existentes no Rio de Janeiro — que detêm poder político, influindo na eleição de prefeitos, vereadores, deputados estaduais e, comenta-se, até mesmo na do governador fluminense — torna a conexão militares-forças de segurança perigosa para a democracia?
As milícias no Rio de Janeiro e em outros lugares do país foram toleradas e têm sido toleradas pelo Estado e, em parte, pelas populações, como antídotos ao tráfico de drogas e a outras criminalidades. Trata-se de uma conciliação inaceitável e intolerável do ponto de vista democrático. Conciliar com as milícias é jogo perigosíssimo, o que já está demonstrado na prática. Lutar contra elas implica políticas enérgicas e também debate na sociedade, pois as milícias dispõem, em muitos lugares, de prestígio e apoio populares.
De forma jocosa, a intelectualidade brasileira de esquerda diz que como nossos militares participam pouco de missões em conflitos internacionais, a maneira que têm para preencher o tempo livre é articular golpes de Estado. Reequipar e profissionalizar nossas Forças Armadas, tornando-a uma potência regional, seria uma maneira de afastá-las da política?
Não creio que a multiplicação de missões internacionais, por si mesma, possa modificar para melhor o ânimo intervencionista das Forças Armadas brasileiras. Basta ver as missões no Haiti, comandadas por chefes militares que se revelaram golpistas. Também de pouco adiantarão mais tanques e equipamentos para que os militares “brinquem” de guerra. Do que precisamos é de mudanças qualitativas na formação dos militares, nas academias militares, nos cursos de aperfeiçoamento de oficiais e na Escola Superior de Guerra (ESG). Trata-se de repensar o papel das Forças Armadas no contexto democrático, formulando uma nova doutrina, superando-se as tradições e os cacoetes da guerra fria e do “inimigo interno”. Isso, infelizmente, nunca foi feito desde o fim da ditadura. Ao contrário, as concepções da chamada “guerra híbrida” (general Villas-Bôas) apenas reatualizaram as distorções e os preconceitos dos militares em relação ao regime democrático. Nas campanhas eleitorais, desde os anos 1980, não se ouve falar nas Forças Armadas, em seu papel, suas missões. É uma espécie de tabu ao qual se curvam diligentemente políticos e partidos de esquerda e de direita. Enquanto prevalecer esta (não) orientação, as tradições vão se reproduzindo.
O que o senhor pensa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 21/21, que proíbe que os militares da ativa ocupem cargos de natureza civil na administração pública — seja na União, nos estados, no Distrito Federal ou nos municípios? A PEC tramita na Câmara, mas, ao que parece, esbarra exatamente nas corporações de militares e nos parlamentares que os representam na Casa. A matéria teria potencial de reduzir a participação dos fardados na política?
Penso que é uma boa contribuição, mas deveria vir no contexto de uma ampla e substancial discussão a respeito do papel das Forças Armadas no regime democrático. É disso que precisamos: de uma concepção e de um projeto para as Forças Armadas, à luz dos quais os oficiais seriam formados em seus cursos e academias.
O ex-presidente do período ditatorial Ernesto Geisel classificou Jair Bolsonaro como um “mau soldado”, em uma entrevista concedida em 1993. Como o senhor explica que generais e coronéis se deixaram envolver pela retórica extremista do ex-presidente, sobretudo sendo ele um ex-militar que mal chegou a capitão e que, na caserna, mais se alinhava com subalternos do que superiores, em clara quebra da cadeia hierárquica?
Muitos militares (e também civis) guardaram profundo ressentimento da transição da ditadura para a democracia, apesar da conciliação que regeu todo o processo. Já me referi aqui ao dano causado à democracia pela insuficiente discussão sobre o período ditatorial, seus fundamentos, suas causas e características. A sociedade brasileira repetiu o que já fizera depois do Estado Novo, uma outra cruel ditadura: “jogou o manto” sobre o passado. A maioria preferiu acompanhar a proposta de Tancredo Neves: “Não vamos olhar para o retrovisor”. É evidente que não devemos olhar “só” para o retrovisor. Mas ignorar o valor do retrovisor é se arriscar a repetir os mesmos erros. Ora, como sabemos, a reiteração dos erros não conduz a acertos. O saudosismo da ditadura — presente entre militares e civis — encontrou em Jair Bolsonaro um arauto, um líder com grande comunicação popular. O que importou para seus seguidores não foram seus defeitos, bem conhecidos, mas sua capacidade em aglutinar e liderar uma alternativa à mal chamada Nova República, regida pela dupla PT-PSDB. Aproveitaram, obviamente, do desprestígio destes partidos, atingidos em cheio pela crise da democracia, que ocorre não apenas no Brasil, como bem sabemos, mas em todo o mundo e que tem causas profundas, em discussão aqui e no exterior. A recuperação dos valores democráticos exige uma discussão em profundidade. A verdade é que a democracia está muito desgastada. Em certos setores, desmoralizada. Um contexto deste tipo é fecundo para aventuras autoritárias, lideranças carismáticas e saudosismos ditatoriais.
Temos visto que interessa à extrema direita bolsonarista que os militares continuem se envolvendo com política. É uma forma de mantê-la coesa e, sobretudo, preservar um espaço conquistado nos últimos quatro anos, inclusive no Congresso. Isso representa que o golpismo fará parte, explicitamente, do nosso dia a dia?
Como já tentei argumentar, as tradições intervencionistas e, eventualmente, golpistas, nas Forças Armadas só serão superadas no contexto de uma discussão sobre o papel destas Forças no regime democrático brasileiro. Enquanto isso não acontecer, e precisa acontecer, é claro, com a participação das Forças Armas, estaremos à mercê da reprodução do intervencionismo militar. Os militares se consideram “anjos da guarda” da República. Precisam ser considerados como funcionários públicos fardados. E com papel na construção e na defesa do regime democrático. Repito: não basta “dar” tanques, navios e aviões. Não basta envolver os militares em “missões e expedições” internacionais (pode ser até pior). É preciso mudar o conceito e as concepções que orientam as doutrinas militares no contexto do regime democrático. E fazer com que estas mudanças impactem o conjunto da formação dos militares. Fácil de dizer, difícil de fazer.
O senhor acha que os militares se galvanizaram em torno de Bolsonaro por causa da antipatia evidente — não sem motivos — que a ex-presidenta Dilma Rousseff tinha pelas Forças Armadas? O fato de ela ter feito um segundo governo desastroso do ponto de vista econômico, que levou ao impeachment, também não favoreceu essa aglutinação junto ao ex-presidente?
Não faria do governo Dilma o bode expiatório, embora concorde que o seu governo não foi nada brilhante. A rigor, no governo dela, houve um processo de aceleração do enfraquecimento do prestígio da Nova República e da democracia brasileira. Vamos encarar os fatos: a democracia brasileira, em amplos meios, inclusive populares, está profundamente desgastada ou mesmo desmoralizada. O desafio, como digo há anos, é “democratizar a democracia”. Para que as maiorias defendam a democracia, é preciso que a democracia as defenda de forma clara, por meio de serviços públicos de qualidade (educação, saúde, moradia, educação), de combate às desigualdades sociais gritantes, de enfrentamento claro e aberto às taras da sociedade (racismo, discriminação de mulheres e de minorias). É razoável supor que as pessoas comuns estejam dispostas a defender com suas vidas os privilégios do Congresso, da Justiça (uma das mais caras do mundo), os lucros absurdos do capital financeiro, ancorados em juros escorchantes? A sociedade brasileira escapou (provisoriamente) da extrema direita, menos pela resistência popular e mais pela ação (embora débil) das instituições. Mas, parafraseando o poeta, o ventre que gerou Bolsonaro continua fecundo. Imaginar que o único problema é Bolsonaro é olhar a árvore e perder de vista a floresta.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vem sendo criticado por não ter tornado Braga Netto inelegível no mesmo processo que baniu Bolsonaro das urnas pelos próximos oito anos. Acusam a Corte de ter se acovardado por ser o ex-candidato a vice-presidente um general da reserva. A CPI do 8 de janeiro em algum momento chegará ao coronel Jean Lawand, que prestou depoimento dias atrás e foi duramente atacado pelos parlamentares governistas, e ao tenente-coronel Mauro Cid. E, a partir daí, será cobrada punição a eles e outros semelhantes. Podemos ter, por causa disso, um novo momento de instabilidade política em um futuro breve?
Os militares — e os civis — envolvidos em conspirações e ações golpistas precisam ser exemplarmente punidos pela Justiça, de acordo com o devido processo penal e com direito à ampla defesa e ao contraditório. Agora, os demais líderes de extrema direita precisam ser derrotados nas urnas, e não nos tapetões dos tribunais. Essa ideia de atribuir aos tribunais o direito de cassar mandatos está sendo muito celebrada por democratas de distintas orientações e pelas esquerdas. Não compartilho desta orientação. Lembro a essas pessoas que esses mesmos tribunais inviabilizaram a candidatura de Lula, em 2018, aplicaram alegremente a infame lei da delação premiada (sancionada pelo PT!) e otras cositas más. As forças democráticas — de direita e de esquerda — precisam isolar e derrotar a extrema direita nas urnas e nas ruas, no debate político e cultural. Do que precisamos para fortalecer a democracia, como sempre, é celebrar não o estado e os “salvadores da pátria” (de direita ou de esquerda), mas a autonomia (esta formosa palavra) das gentes.
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