Entrevista

Democracia precisa de defesa contra "truques furtivos", alerta economista venezuelano"

Para o economista, escritor e ex-ministro de Comércio e Indústria da Venezuela, Moisés Naím, o mundo vive uma tendência ao autoritarismo que deve ser confrontada

Victor Correia
postado em 25/06/2023 03:55
 (crédito: Divulgação)
(crédito: Divulgação)

O economista, escritor e ex-ministro do Comércio e Indústria da Venezuela Moisés Naím destacou a importância de se proteger os pesos e contrapesos que regem as democracias no mundo. Em sua visão, defendida em seu livro mais recente, Vingança do Poder, lançado em março no Brasil, o mundo vive uma tendência ao autoritarismo que requer uma luta diária contra "agentes que tentam derrubar a democracia com truques furtivos, dissimulados".

Em entrevista ao Correio, ele diz que a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, e a das sedes dos Três Poderes, em Brasília, demonstraram que as instituições democráticas foram capazes de resistir à tentativa autoritária. Porém, alerta, a ameaça ainda não passou.

Naím comentou ainda sobre a política externa do governo brasileiro. Ele diz ser bem-vinda a liderança de de Luiz Inácio Lula da Silva para representar os interesses na América do Sul no xadrez mundial. Mas as falas do presidente sobre a ditadura venezuelana, comandada pelo presidente Nicolás Maduro, podem colocar em xeque sua estratégia.

Sobre o tratado comercial entre Mercosul e União Europeia (UE), tema da viagem mais recente de Lula à Europa, Naím defende que é preciso sair do "blá blá blá" dos últimos 20 anos. Confirma os principais trechos da entrevista.


O senhor defende que há no mundo uma tendência autoritária, contra a democracia. Como impedir esse avanço?

O que precisa ser feito passa pelo reconhecimento mais amplo da urgência e da importância do problema. Procurar por medidas que vão lidar com essa propensão à autocracia que nós vemos hoje. As pessoas precisam aprender que a democracia não é algo que acontece somente a cada quatro anos, mas, também, o que acontece entre os períodos eleitorais. É necessária a proteção dos direitos e dos pesos e contrapesos que impedem a concentração de poder na Presidência, no Legislativo ou na Suprema Corte. Para que nenhum desses três pilares da democracia aja por conta própria. Infelizmente, eles estão agindo por conta própria e existe um ataque global aos pesos e contrapesos.

Como isso se relaciona com os atos de 8 de janeiro no Brasil?

Ao mesmo tempo em que temos que tomar cuidado com isso, precisamos celebrar que, em casos recentes, as instituições democráticas prevaleceram. Nós vimos a situação nos Estados Unidos, com o ataque ao Capitólio, e agora estamos vendo como as pessoas que participaram disso estão sendo presas por um longo tempo. A mesma coisa no Brasil, onde também houve um ataque que tentou imitar o que houve nos Estados Unidos e falhou, porque as instituições funcionaram. Nós estamos vendo um dos grandes debates do nosso tempo, que é sobre liberdade e a divisão entre liberdade individual e liberdade nacional. É uma batalha que deve ser enfrentada com o objetivo de proteger a democracia. Não há nada mais importante que isso.

As medidas tomadas pelo Brasil contra o ataque foram bem recebidas pelo mundo?

O mundo reconhece e aplaude o Brasil, e entende que os diferentes atores que jogaram o jogo o fizeram de forma que a democracia ganhou. Isso precisa ser reconhecido. Agora, isso não é um ato único. É uma proteção constante contra tentativas que vêm de todos os lados contra as instituições, contra a Constituição, contra os pilares que sustentam a democracia. É uma luta diária contra os que tentam derrubar a democracia com truques furtivos, dissimulados.

Como o senhor vê o papel que Lula assume de ser um porta-voz da América do Sul, como visto na visita ao papa Francisco e na Cúpula em Paris?

A América Latina sempre lamentou a falta de ativismo internacional representando a região — que o Brasil um dia teve, especialmente com Lula. Vemos com bons olhos que o Brasil atue não somente para si, mas para toda a região. É o maior país, com a maior economia e merece ser o líder. Infelizmente, ao longo dos anos, isso não aconteceu. Agora, Lula criou uma estratégia na qual ele é um protagonista como estadista internacional. No seu último mandato, ele ofereceu ajuda para mediar o conflito entre Palestina e Israel. Ele também teve uma grande iniciativa na África e já falou sobre a tragédia na Venezuela.

As falas sobre a Venezuela podem atrapalhar esse esforço?

Ele está tentando ser um porta-voz internacional, um líder, mas essa boa intenção é anulada, neutralizada, tornada ineficaz quando se ouve o que ele está pensando sobre esses problemas. No caso da Venezuela, ele basicamente disse que a situação no país é o resultado de uma "terrível narrativa negativa" contra o governo do Maduro. Isso o fez se tornar motivo de piada entre todos que acompanham a situação. Você só precisa de cinco minutos para saber que a tragédia na Venezuela não é questão de narrativa, mas é uma desgraça, uma situação horrível que pode ser parada, porque é engendrada pelo governo Maduro.

O presidente erra ao insistir nessa "narrativa"?

Em sua conversa com o papa, espero que ele tenha se lembrado, e que tenha sido lembrado, que está falando de um país no qual as pessoas estão sendo — normalmente, como uma política de Estado — detidas e torturadas. E isso está acontecendo agora, enquanto nós conversamos e enquanto Lula estava conversando com o papa. Sim, damos boas-vindas à liderança do Brasil, ao papel do Lula. Mas, para que ele seja efetivo, deve parar de ouvir e repetir a falsa história sobre quais são as raízes e causas da tragédia venezuelana e sobre quais são as melhores formas de intervir.

Temos também a negociação para o tratado União Europeia-Mercosul, que se estende por décadas. O acordo vai se concretizar agora?

Essa é uma situação de ganha-ganha, e seria perfeito que o Mercosul e a UE tivessem um acordo comercial. Como você disse, isso está sendo negociado há décadas. Já passou da hora para mais ações e menos discursos. Você pode ler os discursos de 10 anos atrás, e eles vão dizer exatamente a mesma coisa: são duas regiões que têm muito em comum, há valores e interesses compartilhados, e um acordo de comércio é natural, indispensável, bom para a Europa e para o Brasil e blá blá blá. Nada aconteceu. Precisamos saber quais são as mudanças que estão sendo feitas agora para tornar o acordo viável. Esse vai ser um novo blá blá blá ou haverá ação? De que forma os dois lados estão mudando as condições e aceitando as alternativas para tornar isso prático, viável e real? Precisamos saber não o que eles querem fazer e por que não conseguem, mas, sim, quais mudanças estão sendo feitas às suas posições.

O tema ambiental é um dos principais entraves para o acordo. O Brasil está se adequando ao combate às mudanças climáticas?

Lula já tomou medidas. Nós tivemos, durante o governo Bolsonaro, os aspectos ambientais ignorados. Foi um período triste para qualquer um que tenha alguma preocupação com as mudanças climáticas. O Lula tem a oportunidade de ser um líder e entrar na história não como um presidente que foi preso por corrupção, mas como um presidente que assumiu a liderança trazendo medidas práticas pela solução das mudanças climáticas.

 

 

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