RECEITA FEDERAL

Tentativa de desviar joias das Arábias foi intencional, diz auditor

Integrantes do então governo de Jair Bolsonaro agiram com consciência ao entrar no Brasil sem declarar os presentes dados pelo governo da Arábia Saudita à ex-primeira-dama Michelle

Vicente Nunes — Correspondente
postado em 06/06/2023 16:32 / atualizado em 06/06/2023 16:34
 (crédito: Reprodução/ Vicente Nunes/ CB/ D.A. Press)
(crédito: Reprodução/ Vicente Nunes/ CB/ D.A. Press)

Vila Nova de Gaia, Portugal — O auditor da Receita Federal Mario de Marco, que apreendeu as joias dadas pelo governo da Arábia Saudita à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, diz que já foi ouvido pela Polícia Federal e está pronto para prestar esclarecimentos sobre o caso ao Ministério Público. Segundo ele, desde que passou a atuar na Alfândega do Aeroporto de Guarulhos, o maior do país, em 2006, nunca viu um movimento tão pesado para liberar uma mercadoria aprendida pelos fiscais. A pressão partiu, sobretudo, do então secretário da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, que atuava em nome do Palácio do Planalto. "Foi tudo fora dos padrões quando se fala de decisões técnicas, mas o secretário acabou desistindo", conta.

De Marco lembra que os pedidos para a liberação das joias, avaliadas em mais de R$ 16 milhões — o valor real será definido dentro do inquérito aberto pela Polícia Federal —, começaram logo depois que o pacote nos quais elas estavam escondidas foi detectado no aparelho de raios-x, em outubro de 2021. O colar, os brincos, o relógio e o anel, todos cravejados de diamantes, estavam na bagagem de Marcos André dos Santos Soeiro, à época, assessor do ministro de Minas de Energia, Bento Albuquerque. O próprio ministro interveio para liberar as mercadorias, mas sem sucesso. O fiscal insistiu que uma irregularidade havia sido cometida ao se tentar entrar com as joias no Brasil sem declará-las à Receita.

A pressão maior para a liberação das joias das Arábias, contudo, ocorreu no último mês do governo de Jair Bolsonaro. “O final da gestão passada foi um pouco acima (do normal). As coisas foram um pouco aceleradas, de buscas por soluções, consultas. Realmente, no tempo em que estou na Receita, foi uma novidade”, diz o auditor. Para ele, as pessoas que tentaram enganar o Fisco agiram de forma intencional, pois deveriam informar à Receita o que estavam carregando. “Estamos falando de pessoas que conheciam as leis ou deveriam conhecer”, frisa. Foi dada, inclusive, a oportunidade de que os responsáveis pelas joias entregassem a documentação legal, pagassem o imposto de importação e as multas por sonegação, algo como R$ 12 milhões. Não houve interesse em regularizar as mercadorias.

Segundo De Marco, as joias estão, hoje, com a Polícia Federal, que periciou todas as peças. A partir do encerramento do inquérito, elas devem retornar à Receita Federal. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, terá a opção de requerer a incorporação delas ao patrimônio da União. Caso essa solicitação não ocorra, o Fisco poderá levar as joias a leilão. “O papel da Receita é arrecadar recursos para o governo. Eu, particularmente, acredito que a melhor opção seria destiná-las para um museu”, afirma ele, garantindo que o fato de ter apreendido as joias em nada mudou a sua vida. “Continuo trabalhando normalmente.”

Bolsonaristas calados

O auditor reconhece, porém, que, logo depois da revelação da apreensão das joias das Arábias pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, ganhou notoriedade pública. Ele relembra que, apesar da grande polarização política do país, não recebeu nenhuma hostilização. De um lado, os defensores do presidente Jair Bolsonaro se calaram sobre o assunto. De outro, os apoiadores do presidente Lula só tiveram palavras de elogios. “O Brasil passou por um momento político muito conturbado, de extremos. Mas o que aconteceu foi que, quem estava num extremo, me abordava efusivamente e quem estava no outro extremo ignorava o assunto”, afirma. “A mim, só chegaram palavras boas, de reconhecimento pelo trabalho da Receita. Quem não se sentia representado, nem abordava o tema. Ninguém conseguiu atacar o ato em si”, acrescenta.

Na avaliação do fiscal, não é papel da Receita se envolver em questões políticas ou pessoais. Trata-se de um órgão de Estado, técnico. “O caso (das joias das Arábias) está com as instituições responsáveis, como a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União (TCU)”, assinala. Segundo ele, o Fisco não toma decisões açodadas, todas as ações são baseadas na legislação e têm seu tempo de decisão. “Há um rito legal. (No caso das joias), tentaram não seguir esse rito”, emenda. Ele destaca que é normal que existam pedidos à Receita, mas nada é decidido fora dos padrões. Diz, ainda, que as autoridades que circulam pelos aeroportos do país têm tratamento igual ao de todos os cidadãos, a diferença é a questão da segurança dessas pessoas. “Mas, do ponto de vista tributário, de revistas, o tratamento é idêntico ao dado a todos os passageiros”, garante.

Ele reconhece que o trabalho da Receita não é perfeito, pois é impossível averiguar todos os que trafegam pelos terminais. “Mas o Fisco tem a exata noção sobre 90% das pessoas que estão em um avião que decola no exterior em direção ao Brasil”, enfatiza. Foi nesse vácuo que o Fisco não conseguiu autuar integrantes do governo Bolsonaro que entraram no país com outros dois pacotes de joias sem que houvesse a devida declaração. “Não temos a pretensão de fazer um controle absoluto, sem nenhuma possibilidade de erro. A função aduaneira é oferecer eficiência para o controle sem prejudicar o fluxo de passageiros nos aeroportos. É impossível averiguar 100% dos passageiros em qualquer lugar do mundo”, explica. Para ele, se todos os viajantes tivessem de ser revistados pela Receita, os terminais aeroportuários praticamente parariam. “Não vale a pena correr esse risco”, complementa.

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