Entrevista // Daniel Scioli

'É fundamental fortalecer a AL', diz embaixador da Argentina no Brasil

Daniel Scioli defende que vizinhos aprofundem ainda mais a relação comercial e de investimentos. Para o diplomata, juntas as duas nações seriam capazes de equilibrar o jogo contra o avanço da China. Além disso, poderiam servir de paradigma para a integração da região

Pré-candidato à Casa Rosada, o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, enxerga na integração cada vez mais profunda entre os dois países como um jogo em que todos saem ganhando. Mas, para o ex-governador de Buenos Aires e diplomata, isso não gira em torno somente da promessa que Luiz Inácio Lula da Silva fez, no começo deste mês, ao presidente Alberto Fernández de trabalhar por investimentos e no desenvolvimento de projetos conjuntos com o país vizinho. Para Scioli, a conexão mais estreita entre Brasil e Argentina freia a agressiva política comercial da China e, conforme frisou, serve de exemplo para a construção de um modelo de integração na América do Sul que pode se estender para a América Latina. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio Braziliense.

O que a Argentina espera da promessa de apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita na visita do presidente Alberto Fernandes, no começo deste mês?

O que a Argentina solicita é que o Brasil encontre um mecanismo para financiar suas indústrias para maior volume de exportações. A Argentina não quer dinheiro, mas, nesta conjuntura de restrições nas reservas de dólares, que o Brasil encontre um sistema de financiamento para seus exportadores, que vendem para a Argentina insumos, matérias primas, autopeças... Essa cúpula de presidentes da América Latina é para recriar, atualizar o espírito de integração, para sermos mais fortes juntos. Dará oportunidade, também, de avaliar os avanços deste momento positivo para a indústria brasileira, como disse recentemente o presidente (Josué Gomes) da Fiesp (Federação das Indústria de São Paulo).

O senhor foi considerado muito habilidoso em vencer a resistência do ex-presidente Jair Bolsonaro na relação bilateral com a Argentina. Mas, agora, o que mudou?

Minha missão aqui começou em agosto de 2020, com o objetivo de reconstruir a relação com o Brasil. Uma agenda comum, positiva, para que o Brasil volte a ser o parceiro número um de Argentina. Depois do primeiro ano, solucionamos disputas comerciais e tivemos um recorde no comércio internacional nos últimos nove anos. Passada essa etapa, agora com o novo governo, com o compromisso que Lula tem com o Mercosul, com a relação privilegiada com a Argentina, com o desejo de recriar a Unasul, agora se está construindo um acordo executivo profundo decidido em 23 de janeiro, com a visita do presidente brasileiro a Buenos Aires. Definimos quase que a totalidade e estamos, agora, concluindo os últimos pontos do acordo, que é a integração financeira. Outro, é a integração energética, com a liberação de restrições para que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) avalize o financiamento dos dutos para continuar com o segundo tronco do gasoduto (de Vaca Muerta) que beneficiará muito o Brasil, que comprará gás com preços melhores e de forma mais sustentável. A Argentina também vai se beneficiar, pois em vez de importar gás, passará a exportar a partir dessa obra de infraestrutura.

As críticas no Brasil são grandes quanto a projetos de infraestrutura que foram realizados em países vizinhos, cujos financiamentos não foram pagos...

Sei que isso é muito sensível por questões do passado, mas, hoje, o que se avalia é que o Brasil financie apenas os tubos que se fabricam no Rio de Janeiro, com uma empresa brasileira, com trabalhadores brasileiros — só isso. A obra civil, a engenharia, será financiada pela Argentina; o Brasil só financiará os materiais que são produzidos aqui. Esse projeto não começou agora. No governo anterior, um dia me ligou o ministro (da Economia) Paulo Guedes, que me disse sobre o grande interesse do BNDES em financiar a segunda etapa do gasoduto. Iniciamos os trabalhos técnicos, também falamos de garantias. Agora, mudou o governo e damos continuidade a este grande objetivo de integração energética.

Quais garantias? E se a Argentina não conseguir pagar por esses investimentos brasileiros?

A Argentina só solicita que o Brasil estude mecanismos para financiar suas empresas, suas indústrias. Esse é o ponto. Senão, o Brasil perde o mercado para a China, que vende para a Argentina muitos produtos semelhantes com financiamento. Geopoliticamente é muito importante aprofundar a integração e encontrarmos juntos mecanismos para potenciar o comércio de fertilizantes, de semicondutores. É possível produzir nos nossos países para ter uma maior autonomia e independência. Argentina e Brasil têm, juntos, um grande projeto, que se realizou anos atrás, em Minas Gerais, com investimento privado argentino. Queremos reativar esse projeto para não dependermos de comprar semicondutores. Nosso objetivo é criar uma complementação maior do ponto de vista industrial, do ponto de vista financeiro, do ponto de vista do abastecimento da nossa região.

O contribuinte brasileiro quer saber quem paga a conta. O senhor acredita na saída pelos BRICS? A Argentina espera participar do grupo?

Dependerá da vontade dos outros países. O que podemos dizer sobre as garantias é que a Argentina não tem problema estrutural de dólares. Tem problema conjuntural, porque sofre a pior seca dos últimos 90 anos. Perdeu a entrada de US$ 20 bilhões que estavam previstos. Quando se normalizar esta situação, as perspectivas de um futuro próximo são muito boas em mineração de lítio e cobre, no agro, nos alimentos, em energia, em turismo, na economia do conhecimento. A Argentina tem aquilo que o mundo precisa — alimento, energia, minerais para o novo tempo da mobilidade elétrica. Sobre o financiamento para exportações, convido que fale sobre isso com o presidente da Marco Polo (fabricante de carrocerias de ônibus), Daniel Rondon. Estão reclamando que o Brasil encontre uma solução. A solicitação de financiamento das exportações não é uma demanda da Argentina; é uma demanda legítima dos empresários brasileiros.

O que se pode esperar da participação do presidente Fernández na cúpula (que começa hoje)? A Argentina já formatou a proposta de acordo para o Brasil quanto às garantias para as exportações?

Estamos trabalhando para encontrar uma solução para o financiamento das empresas brasileiras. Certamente Fernándes deve demonstrar a gratidão com os esforços do governo do Brasil para encontrar essa solução para as suas empresas e por apoiar a Argentina nas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

O apoio do Brasil, tanto na negociação com o FMI como na busca de uma garantia do Banco do BRICS, será suficiente?

O acordo com o FMI, fechado pelo então ministro da Economia, Martín Guzmán, no artigo 22 tem uma cláusula sobre questões extraordinárias, como a seca. Isso abre a possibilidade de reconsiderar as metas e os objetivos. A respeito do que está para começar esta semana na China (reunião do Banco dos BRICS), creio que quando há vontade política e compreensão das razões justas, se alcançam as soluções.

Qual a perspectiva da Unasul na sua opinião?

Creio que no contexto de crise da globalização, é fundamental fortalecer a América do Sul com uma agenda de integração energética, de infraestrutura — dois aspectos muito importantes. Acredito que o que vai acontecer entre Brasil e Argentina, com um profundo acordo de integração, será uma referência inspiradora. Devemos encontrar os pontos de interesses comuns entre todos os países da América Latina. E creio que nesta terça-feira, com a apresentação de cada presidente, se mostrará um grande progresso para se alcançar esse objetivo.

Essa integração profunda passa pela moeda única para o Mercosul?

O ministro Fernando Haddad afirmou que esse é um dos objetivos, de médio prazo, para uso comercial. É um tema que será necessário um profundo debate pelos bancos centrais, com os ministros da economia. Minha missão, agora, é com um futuro próximo, esperando que o povo argentino me dê a oportunidade de ser seu presidente.

O senhor pretende, novamente este ano, disputar a Casa Rosada, depois de perder, em 2015, para o ex-presidente Ricardo Macri. Caso vença, qual a saída para a profunda crise vivida pela Argentina?

Em 2015, perdi por algo entorno de 1%. Acredito na Argentina, acredito nas suas forças produtivas, acredito que os problemas de agora têm solução. O povo argentino conhece a minha experiência, minha trajetória minha previsibilidade, minha sensatez, minha moderação, minha capacidade de diálogo com todos os setores da vida política, no meu país e no mundo, como demonstrei no Brasil. Cada eleição é nova demanda e o povo argentino demanda isso. Quando depositar o voto, privilegiará isso — a experiência que propõe um grande projeto de futuro e que solucione os problemas imediatos.

O senhor contará com o apoio do kirchnerismo?

São as pessoas que votam. Obviamente, a vice-presidente (Cristina Kirchner) tem um grande peso político. Com a criação da lei das primárias para todos os partidos políticos, decidi participar delas, pois acredito que o melhor é a vontade popular para orientar as candidaturas.

O senhor está otimista para as primárias?

Muito. Tenho a escola do esporte, que quando se sai em campo para o jogo, deve-se estar convencido que vais ganhar. Estou convencido que, com minha experiência, meu programa de governo, será o que triunfará — apesar dos problemas com a inflação, com os baixos salários, da pobreza. Se focarmos um maior esforço em produzir, e cada vez mais com o Brasil, a Argentina será um ator relevante no contexto internacional.

Como o senhor tem dividido o tempo entre Buenos Aires e Brasília com a campanha presidencial?

A melhor campanha é resolver os problemas. O povo me conhece muito bem. Não necessito fazer campanha tradicional como os outros candidatos, que prometem soluções milagrosas, felicidade e grandes salários. A minha é diferente. Quero agradecer porque o Brasil me deu a oportunidade de desenvolver toda a minha experiência. Com o governo anterior (de Jair Bolsonaro), apesar da grande diferença política e ideológica, mas com grande pragmatismo e responsabilidade, fomos reconstruindo a relação. Agora, com o governo do presidente Lula, vivemos um tempo de integração profunda com todo o Brasil.

Confira vídeo da entrevista