A Polícia Federal deflagrou nesta quarta-feira (3/04) a Operação Venire, destinada a investigar um suposto esquema que teria adulterado dados de vacinação contra a covid-19 do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de assessores próximos e parentes.
À rádio Jovem Pan, Bolsonaro negou irregularidades. "Não existe adulteração de minha parte. Eu não tomei a vacina", disse o ex–presidente.
Segundo a PF, as fraudes consistiram na alteração dos dados para indicar que os beneficiários do esquema constassem como imunizados, quando, na realidade, eles não tinham sido vacinados.
A fraude teria ocorrido no Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI) e na Rede Nacional de Dados de Saúde (RNDS), do Ministério da Saúde.
Entre os supostos beneficiários do esquema estariam: Jair Bolsonaro, sua filha de 12 anos de idade e outras quatro pessoas.
Segundo documentos revelados pelo Supremo Tribunal Federal, um dos motivos centrais que teria levado à suposta fraude foi a necessidade do grupo de Bolsonaro em manter o discurso antivacina que marcou parte de seu governo desde o surgimento da pandemia de covid-19.
"A apuração indica que o objetivo do grupo seria manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19", diz um trecho da investigação da PF.
"É preciso relacionar o presente contexto criminoso, com a estrutura da Associação especializada investigada nos autos do Inq. 4874/DF, focada nos objetivos de atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral brasileiro, reforçar o discurso de polarização; gerar animosidade dentro da própria sociedade brasileira, promovendo o descrédito dos poderes da República; estimular a animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes constituídos, além de outros crimes", prossegue o texto.
Ainda segundo o ofício da PF, um dos objetivos primários dos suspeitos seria "proteger e garantir a permanência no poder das pessoas que representam a ideologia professada".
A BBC News Brasil entrou em contato com advogados do ex-presidente, que orientou que os questionamentos sobre a operação da PF nesta quarta-feira fossem feitas diretamente à assessoria de imprensa de Bolsonaro.
A reportagem enviou questionamentos à assessoria do ex-presidente, mas até o fechamento desta matéria, nenhuma resposta havia sido enviada.
Mas em que consistiram os supostos "ataques à vacinação" de Bolsonaro contra o imunização para a Covid-19?
Vacinar ou não vacinar?
Entre os anos de 2020 e 2022, a crise sanitária causada pela doença foi um dos principais pontos do debate político do país.
Poucas semanas após o surgimento dos primeiros casos da doença no Brasil, o espectro político ficou relativamente dividido.
O debate no Brasil emulou, em parte, um conflito entre diferentes grupos políticos de outras partes do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, parte do eleitorado mais conservador e alinhado ao Partido Republicano era o que apresentava maior resistência a aderir à imunização contra a Covid-19.
Em setembro de 2021, por exemplo, um levantamento feito pelo Kaiser Family Foundation a partir dos dados de vacinação por condados americanos mostrou que, naqueles em que o ex-presidente republicano Donald Trump teve a maioria dos votos, apenas 39,9% da população havia sido vacinada.
Em comparação, as áreas em que o atual presidente democrata Joe Biden venceu tinham uma taxa média de 52,8% de totalmente imunizados.
No Brasil, o debate se deu entre bolsonaristas de um lado e oposição de outro.
O grupo bolsonarista se manifestava contra as medidas de isolamento social defendidas por entidades como a Organização Mundial de Saúde (OMS), o então ministro da Saúde Luiz Mandetta e lideranças da oposição ao então governo Bolsonaro.
O então presidente Jair Bolsonaro , pessoalmente, se posicionava contra as medidas. Seu argumento era o de que elas prejudicariam a economia do país e colocariam parte da população mais pobre em situação de ainda maior vulnerabilidade.
Em março de 2020, em pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, Bolsonaro pediu o fim de medidas de isolamento social.
"Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa", disse.
Em abril de 2020, ele voltou a focar sobre os supostos prejuízos do isolamento social à economia.
"O Brasil está se tornando um país de pobres. O que eu falava lá atrás, que era esculachado, estão vendo a realidade agora aí. Pra onde está indo o Brasil? Vai chegar um ponto que o caos vai se fazer presente aqui. Essa história de lockdown, ‘vamos fechar tudo’, não é esse o caminho. Esse é o caminho do fracasso, quebrar o Brasil", disse a apoiadores em Brasília.
Em meio a essa crise dentro do governo, Mandetta foi demitido.
Com o passar dos meses e o surgimento das primeiras vacinas contra a Covid-19, a polarização em torno do tema passou a incluir os imunizantes.
De um lado, Bolsonaro fazia declarações que colocavam em xeque a eficácia dos imunizantes contra a Covid-19.
Ao mesmo tempo, ele defendia o uso de medicamentos comprovadamente ineficientes contra a doença como a cloroquina e a hidroxicloroquina.
"Se você virar um jacaré, problema de você. Se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não vão ter nada a ver com isso. O que é pior: mexer no sistema imunológico das pessoas. Como é que você pode obrigar alguém a tomar uma vacina que não se completou a terceira fase ainda, que está na experimental?", disse Bolsonaro em dezembro de 2020.
"E eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está [em estado] experimental. Nunca vi ninguém morrer por tomar hidroxicloroquina, em especial na região amazônica", disse Bolsonaro em junho de 2021.
Do outro lado desse debate, cientistas, acadêmicos e lideranças políticas que na época estavam na oposição a Bolsonaro como o então pré-candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), se manifestavam a favor da vacinação.
Em dezembro de 2020, Bolsonaro passou a afirmar que não iria tomar a vacina contra a Covid-19.
"Como sempre, eu nunca fugi da verdade, eu te digo: eu não vou tomar vacina. E ponto final. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu. E ponto final", disse.
Já em 2021, quando a vacinação no Brasil já havia iniciado, Bolsonaro voltou a afirmar que não se vacinaria.
"Da minha parte, eu não tomei vacina e não vou tomar vacina. É um direito meu e de quem não quer tomar. Até porque os efeitos colaterais e adversos são enormes", disse Bolsonaro.
No relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, Bolsonaro foi apontado como um dos responsáveis pela propagação descontrolada da doença no Brasil, entre outros motivos, por suas declarações contrárias à vacinação.
"Veja-se que, ao incitar a população a não se vacinar, o Presidente da República prejudica o êxito de qualquer campanha de vacinação. Ademais, como apontado na representação criminal acima citada, a recusa à imunização constitui gravíssimo atentado à saúde pública, pois também facilita a ocorrência de formas mutantes do mencionado organismo", diz um trecho do documento.
O relatório final da CPI sugeriu o indiciamento de Bolsonaro por nove crimes: prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado morte; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade.
Em uma transmissão em suas redes sociais, em outubro de 2021, Bolsonaro criticou as conclusões do relatório.
"Não vou discutir essa história de fantasia, festival de baboseiras", disse.
Ao longo de 2022, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu o arquivamento de ações abertas contra Bolsonaro em decorrência dos pedidos de indiciamento feitos pela CPI da Pandemia.
Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou o arquivamento de pelo menos duas investigações contra Bolsonaro em decorrência da CPI da Pandemia. Uma delas, ele era investigado por infração de medida sanitária pelo não-uso de máscara em lugares públicos. Na outra, ele era investigado por "causar epidemia".
O arquivamento foi determinado pelo ministro Dias Toffoli que acatou um pedido feito pela PGR. Segundo o órgão, não teriam sido encontrados "indícios mínimos" para a abertura dos inquéritos.
Apesar disso, a condução das medidas contra a Covid-19 foram alvo de intenso debate durante as eleições presidenciais de 2022, quando Bolsonaro perdeu para Lula no segundo turno. Em setembro de 2021, quando a CPI da Pandemia ainda estava em funcionamento, 54% da população, segundo o Datafolha, reprovam a gestão de Bolsonaro em relação à Covid-19.
Em abril de 2022, o índice caiu, mas ainda estava em 46%.