Anunciada no cargo no fim do ano passado, a embaixadora do Reino Unido no Brasil, Stephanie Al-Qaq, guarda íntima relação com o país: dois dos seus três filhos nasceram no Brasil. Ela foi conselheira política na Embaixada Britânica em Brasília, entre 2007 e 2012. Stephanie faz história por ser a primeira mulher a comandar a diplomacia britânica em solo brasileiro.
Em entrevista ao Correio, ela defende que os dois países devem se aproximar ainda mais nos próximos anos. E destaca que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva pode colaborar de maneira significativa para a criação de uma agenda em torno da economia verde, focada na proteção ambiental e da biodiversidade no planeta. Além disso, a embaixadora diz que vai trabalhar para que se ampliem os acordos bilaterais.
A diplomata conta ainda, na entrevista, que visitou o Vale do Javari com a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, para homenagear Dom Phillips e Bruno Pereira, assassinados na região há 11 meses. Ao falar sobre a guerra na Ucrânia, ela condena o ato da Rússia e diz que o mundo deve pressionar para que as tropas de Vladimir Putin sejam retiradas do solo ucraniano.
E como a senhora avalia Brasília? Já teve tempo de se reconectar com a cidade?
Eu amo a cidade. Me sinto em casa mesmo estando longe de casa. Meus lugares favoritos são: feijoada do Ki-Filé, gosto da carne do Steak BSB, da Pauliceia e do peixe do Ki-Mukeka. Estou tentando achar uma escola de futevôlei para o meu filho. Me avise se tiver uma boa recomendação.
A senhora é a primeira mulher a chefiar a missão do Reino Unido no Brasil. O que representa isso, na sua visão? É preciso que as mulheres tenham mais espaço na carreira diplomática no mundo?
Durante a minha carreira, pude perceber que negociações, sejam elas políticas ou econômicas, tornam-se mais produtivas quando há mulheres à mesa. Atualmente, com mulheres ocupando 30% dos cargos de chefe de missão ao redor do mundo e 42% dos cargos na diplomacia, o Reino Unido se empenha em apoiar a participação feminina em espaços de liderança e tomada de decisão e em diminuir as lacunas de direitos entre homens e mulheres. É ótimo ver um número crescente de mulheres em cargos de liderança também no Brasil, do comércio à diplomacia. Ainda há um caminho a percorrer para a igualdade, como existe no Reino Unido, mas estamos no caminho. Ter exemplos de destaque — femininos e masculinos — é fundamental.
Tanto o Reino Unido quanto o Brasil passaram agora por mudanças de poder, com o início do governo Lula e a coroação do Rei Charles. É possível que ocorra uma proximidade entre as duas nações?
A relação entre Reino Unido e Brasil é antiga e forte em muitas áreas. Desde que o terceiro mandato do presidente Lula começou, já tivemos várias reuniões com ministros e outros representantes do governo brasileiro. Também tivemos algumas visitas de ministros britânicos ao Brasil. Nosso ministro das Relações Exteriores, James Cleverly, vem no fim de maio ao Brasil. Tudo isso demonstra como o governo britânico vê o Brasil como um país estratégico. No encontro no início do mês, o primeiro-ministro britânico e o presidente Lula concordaram que precisamos trabalhar ainda mais de perto em uma série de temas, como comércio, saúde, ciência & tecnologia e clima. Temos identificado muitas áreas em que podemos nos beneficiar mutuamente. Cheguei ao Brasil em dezembro e estou muito animada para fortalecer o relacionamento entre os nossos países. Temos avenidas de possibilidades em temas como comércio bilateral e a transição para economias mais verdes.
Como a senhora avalia a gestão da biodiversidade na Amazônia pelo governo brasileiro? O que o Reino Unido espera nessa área?
Temos interesse em avançar na agenda de transição para uma economia de baixo carbono com cooperação e parcerias estratégicas para ambos os países na medida em que enfrentamos o desafio das mudanças climáticas. E é claro que a Amazônia é central para alcançarmos nossos objetivos para um mundo mais sustentável. Sei que este é um tema central para o governo Lula. Mas não é só isso. Desde 2016, cerca de 260 milhões de libras já foram destinadas para programas em florestas, agricultura, cidades e infraestrutura no país, fazendo do Brasil um dos quatro principais beneficiários de nosso fundo internacional para o clima. Tive a chance de visitar um dos projetos beneficiados no Pará, o Programa Rural Sustentável, e pude ver de perto o impacto de nosso apoio na região. Contribuímos com 62,3 milhões de libras. A iniciativa é fruto de uma parceria com o Ministério da Agricultura e visa a restaurar terras desmatadas e degradadas em pequenas e médias propriedades para melhorar a produtividade por meio de práticas agrícolas de baixo carbono, evitando o desmatamento.
Recentemente foram registrados conflitos na Amazônia, inclusive com óbito de um indígena e de garimpeiros ilegais. Os EUA pretendem aumentar os repasses ao Fundo da Amazônia para proteção da floresta. Como o Reino Unido pretende colaborar com essa situação?
No encontro com o presidente Lula, o primeiro-ministro Rishi Sunak anunciou que o Reino Unido vai contribuir com cerca de meio bilhão de reais (80 milhões de libras) para o Fundo Amazônia para ajudar a combater o desmatamento e salvar a rica biodiversidade da região. Essa contribuição está ligada à Parceria dos Líderes para Florestas e Clima, lançada na COP27, outro forte sinal do compromisso do Reino Unido com a proteção da Amazônia.
O jornalista Dom Phillips, inglês, foi morto ano passado junto ao indigenista Bruno Pereira. Esse fato impactou de maneira significativa em como o Reino Unido vê o combate a crimes na Amazônia? Como esse caso repercutiu no país e qual a mensagem que a senhora deixa sobre isso?
Visitei a região do Vale do Javari com a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, para homenagear Dom Phillips e Bruno Pereira. Também foi uma visita de agradecimento ao trabalho de busca realizado pelas comunidades locais. Foi um momento emocionante. Evidentemente, o assassinato de Dom e Bruno repercutiu no mundo todo. Eles realmente amavam a floresta e os povos indígenas que vivem nela. Reconhecemos o esforço do governo brasileiro em combater as atividades ilegais na Amazônia. Também tive a oportunidade de ir ao Acampamento Terra Livre, em Brasília, onde encontrei a esposa de Dom, e pude conversar com lideranças indígenas e ter um contato mais próximo com a cultura desses povos. Destaco também outra visita recente, do secretário Lorde Zac Goldsmith, à comunidade Zoró, no Mato Grosso, para conhecer a realidade deste povo in loco. Ele ficou impressionado. Tudo isso contribui para que o tema da proteção dos povos indígenas ecoe também fora do Brasil.
O que mais está sendo feito?
O Reino Unido está comprometido internacionalmente com a promoção dos direitos humanos e com a proteção de seus defensores. Reconhecemos a importância fundamental das comunidades indígenas para a conservação das florestas e da biodiversidade, já que elas estão entre as comunidades mais impactadas pelas mudanças climáticas e pelos crimes ambientais. Nos últimos cinco anos apoiamos iniciativas no Brasil voltadas para a proteção dos defensores dos direitos humanos na Amazônia, promoção de desenvolvimento sustentável com comunidades indígenas e apoio emergencial às comunidades do Rio Negro durante a pandemia. Representantes seniores do Reino Unido mantêm contato regular com departamentos governamentais indígenas no Brasil, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, a fim de aprofundar nossa cooperação e apoio às comunidades.
E a sociedade civil?
A Embaixada do Reino Unido no Brasil também tem mantido contato contínuo com organizações da sociedade civil dedicadas à proteção das comunidades indígenas em todo o Brasil. Temos o compromisso de fornecer às organizações indígenas uma plataforma internacional para ecoar as vozes de suas lideranças diante da comunidade internacional. Nos últimos meses, nos reunimos algumas vezes com a Articulação Nacional dos Povos Indígenas, a Apib, por exemplo. Na quinta-feira antes da Coroação, o Rei Charles III se encontrou com lideranças indígenas. Isso mostra que o monarca tem esse desejo de ouvir os representantes desses povos e que ele entende a importância da proteção de suas culturas.
O Brasil mantém uma postura neutra sobre a guerra na Ucrânia, mas declarações do presidente Lula indicaram que a Ucrânia também tem sua parcela de responsabilidade pelo conflito. Como a senhora avalia as declarações recentes do presidente brasileiro sobre o caso?
O primeiro-ministro Rishi Sunak conversou com Lula sobre este assunto. Eles concordaram que os nossos países precisam trabalhar ainda mais de perto, já que o Brasil tem um papel de destaque no cenário internacional. Desde o início da guerra, a posição do governo britânico é muito clara — e não mudou: qualquer ataque à integridade territorial de outro país viola a Carta das Nações e as convenções de direitos humanos. O mundo inteiro deve pressionar Putin a tirar seu exército da Ucrânia. Mesmo antes do início da guerra, o Reino Unido, assim como outros países, apelaram para que a Rússia não abandonasse os canais diplomáticos. Nosso apoio ao povo da Ucrânia e nosso comprometimento em denunciar e combater as ações ilegais de Putin se mantêm. O governo britânico tem um lado muito claro e reafirma, todos os dias, que a Rússia deve acabar imediatamente com esta invasão ilegal e sem justificativa.
O presidente Lula condenou a violação da integração territorial da Ucrânia por parte do regime de Vladimir Putin...
Sim, isso reflete a posição da diplomacia brasileira nas últimas votações sobre o tema na ONU. Assim como Lula, o Reino Unido acredita numa ordem internacional fundada no respeito ao Direito Internacional e na preservação das soberanias nacionais, pilares da Carta da ONU. A guerra da Ucrânia está longe do Brasil, mas as consequências são sentidas por aqui. O aumento da inflação e a insegurança alimentar, por exemplo, afetam o mundo todo. O Reino Unido considera importante ter o suporte e a participação do Brasil na resolução deste conflito e para dar fim às ações irresponsáveis do regime de Vladimir Putin.
As negociações para um acordo entre a União Europeia e o Mercosul estão travadas. Como o Reino Unido avalia a possibilidade deste acordo comercial e, no caso do Reino Unido, existe a possibilidade de algum acordo bilateral com o Brasil ou Mercosul, tendo em vista que o país não integra mais a União Europeia?
Lula e o primeiro-ministro britânico discutiram a ambição de aumentar ainda mais nosso comércio bilateral. Eu quero me empenhar ainda mais nessa missão. Fortalecer nossa relação comercial vai ser bom para os dois países. Temos uma agência no governo britânico chamada UK Export Finance (UKEF) que pode contribuir muito neste sentido. Queremos intensificar nossa parceria no setor de alta tecnologia, com destaque para áreas como saúde e defesa. A agência tem alocado potenciais 3 bilhões de libras para o mercado brasileiro.
E qual é a prioridade do Reino Unidos?
Neste momento, quando se trata da relação comercial entre Brasil e Reino Unido, a nossa prioridade é a aprovação do Acordo para evitar Dupla Tributação (ADT), que assinamos no ano passado com o Brasil. O objetivo é que a renda seja tributada ou no país de origem ou no país de destino, proporcionando segurança tributária e previsibilidade às empresas. O ADT Brasil-Reino Unido tem o potencial de aumentar substancialmente o comércio e o investimento entre os dois países, além de fortalecer nossa relação bilateral. É uma resposta aos pedidos da comunidade empresarial de ambos os países. Acredito que uma das principais oportunidades de ampliar o comércio nessa área está relacionada à oportunidade de livrar cadeias produtivas do desmatamento ilegal. O mercado britânico apresenta uma ampla oportunidade para produtos desenvolvidos seguindo as tendências e demandas dos consumidores com relação à sustentabilidade. Neste sentido, introduzimos uma nova legislação de diligência por meio da Lei do Meio Ambiente para ajudar a combater o desmatamento ilegal nas cadeias de abastecimento do Reino Unido.
E o que mais?
O Reino Unido tem apoiado o processo de integração do Brasil ao sistema econômico global com o processo de acessão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento, a OCDE. Nosso Programa de Adesão permitiu que o Brasil superasse os obstáculos de preços de transferência, o que vai ajudar a dar mais competitividade para exportadores e prestadores de serviços brasileiros no mercado internacional.
Existem programas de intercâmbio entre universidades brasileiras e inglesas? É possível que brasileiros obtenham bolsas e incentivos para estudar no Reino Unido?
Concedemos bolsas integrais todos os anos para cerca de 50 brasileiros realizarem o sonho de fazer mestrado no Reino Unido através do Programa Chevening. Mais de 2 mil brasileiros já receberam a bolsa. Com isso, contribuímos para impulsionar a carreira de líderes de diferentes origens socioeconômicas, gerando impacto social e ajudando a mudar histórias de vida. Temos muito orgulho das trajetórias daqueles que foram beneficiados pelas bolsas do Chevening. Muitos se tornaram líderes e pioneiros em suas áreas de atuação. Um bom exemplo de parceria entre nossos países nessa área foi o Programa Ciência Sem Fronteiras. O Reino Unido era um dos principais países para onde os estudantes brasileiros queriam ir. Os jovens daqui sabem que as instituições de ensino superior britânicas são reconhecidas por estarem entre as melhores do mundo.
Há muita burocracia para que brasileiros visitem o Reino Unido ou coloquem em prática planos de estudo ou trabalho no país?
O Reino Unido não exige visto para brasileiros que queiram fazer viagens de turismo. Para aqueles que têm planos de estudar ou trabalhar no nosso país, existem alguns requisitos, mas que também se aplicam a pessoas de outras nacionalidades. Todas as informações sobre entrada no Reino Unido estão disponíveis no site do governo britânico, UK help and services in Brazil — GOV.UK (www.gov.uk), e no site do VFS (https://visa.vfsglobal.com/bra/pt/gbr).
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