Relações Exteriores

Lula retoma pragmatismo na relação Brasil-China, dizem especialistas

Já a agenda do chamado "Clube da Paz" ficou em segundo plano na viagem ao gigante asiático. Para os consultados, o presidente Lula acabou se alinhando à retórica russa em meio à guerra na Ucrânia. Críticas do petista aos EUA também marcaram a visita

Ingrid Soares
postado em 17/04/2023 14:56
 (crédito: Ricardo Stuckert)
(crédito: Ricardo Stuckert)

Na China, em uma agenda de três dias com foco na economia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu o pontapé na normalização diplomática entre ambos os países. Especialistas ouvidos pelo Correio apontam que a agenda abre caminho para superar os desgastes causados pela política isolacionista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e apontaram o retorno do pragmatismo na relação bilateral.

Ao fazer o balanço da viagem, Lula destacou a volta do protagonismo internacional do Brasil e mencionou acordos de R$ 50 bilhões com os chineses. Contudo, ressaltou que, mais do que os recursos financeiros, os saldos foram entendimentos em áreas como tecnologia, cultural e educacional. O chefe do Executivo também deu recados claros de que deseja mudar as regras da governança global e que ninguém irá impedir o Brasil de se relacionar com a China, em claro recado aos Estados Unidos. Na ocasião, o líder chinês, Xi Jinping, ressaltou que o Brasil tem “lugar prioritário” na política externa do país.

Na antiga gestão pautada por ideologias, Bolsonaro colecionou polêmicas e desentendimentos com o gigante asiático ao afirmar em diversas ocasiões, em meio à pandemia de covid-19, que o Brasil não compraria vacina da China, e insinuou que o país teria fabricado o vírus para fins de “guerra química”. O entorno do ex-chefe do Executivo também protagonizou atritos. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) chegou a acusar os chineses de espionagem nas discussões sobre o uso da tecnologia 5G. Mesmo com os ataques, ambos os mandatários intensificaram o comércio com o país chinês, que é o maior parceiro comercial do Brasil.

O deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), presidente da Frente Parlamentar Brasil-China e Brics no Congresso, recorda que a China ficou oito meses sem um embaixador no Brasil, após os desentendimentos diplomáticos.

“Bolsonaro protagonizou momentos diplomáticos constrangedores. Lula foi recebido de uma maneira incrível, e percebe-se que a China tem grande interesse em fazer negócios com o Brasil. O presidente deu um show de habilidade voltando ao pragmatismo”.

China x EUA

Ricardo Mendes, sócio da Prospectiva e responsável pelas operações internacionais da consultoria, afirma que a principal diferença entre Lula e Bolsonaro nas relações diplomáticas está na retórica de não-alinhamento do assessor especial internacional de Lula, Celso Amorim.

“Lula também se sente confortável fazendo diplomacia presidencial, algo que Bolsonaro não gostava. As relações efetivamente não mudaram tanto. A China vê essa oportunidade para mostrar força no contexto de guerra fria com os EUA. É uma forma de mostrarem que não estão isolados. Acho que isso muda em relação aos anos anteriores”.

Críticas do presidente Lula aos EUA também marcaram a agenda na China. Para Mendes, a viagem pode custar um acerto de contas com os EUA. “E possivelmente com europeus. A Ucrânia ficou em segundo plano. O Brasil não tem muito a contribuir nesse tema. A China sabe disso. Esse ativismo pode ter um custo caro para o país. O mundo de hoje é muito diferente do de 20 anos atrás. Cadeias produtivas estão se organizando seguindo lógica geopolítica. Podemos acabar fora desse processo”, ponderou.

O cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, destacou que o saldo da viagem foi positivo. Mas ressaltou que a pauta do chamado "Clube da Paz” acabou frustrada na viagem. “Foi positivo e internacionalmente também repercutiu. Mas a questão da Rússia e Ucrânia acabou, de fato, ficando em segundo plano. Houve um comunicado conjunto mencionando a questão do entendimento ser a paz. Houve uma certa convergência nesse aspecto”.

No final da visita a Pequim, Lula cobrou dos Estados Unidos que "parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz" para encaminhar um acordo entre a Rússia e a Ucrânia, disse ser necessário que um grupo de países neutros faça a intermediação das negociações de paz na guerra e que países que auxiliam a Ucrânia com armas (como os Estados Unidos e países da União Europeia) deveriam cessar os fornecimentos. Segundo petista calculou, a viagem à China não é capaz de "criar arranhão" na relação diplomática do Brasil com os Estados Unidos.

Retomada do pragmatismo

Leandro Barcelos, coordenador de Comércio Exterior da BMJ, reforça que a visita de Lula à China marca a retomada da diplomacia e o resgate do pragmatismo brasileiro. “Quando se trata de política externa, Lula é pragmático e, seguramente, irá tentar se aproveitar desse contexto de intensificação das tensões geopolíticas entre China e Estados Unidos. É uma lógica simples, quem oferece mais, leva. Até o momento, os chineses parecem estar bem à frente dos americanos”, disse.

“A expectativa é de que esse novo momento da diplomacia entre Brasília e Pequim resulte em um incremento ainda maior das relações comerciais, bem como dos investimentos chineses no Brasil. As dezenas de acordos assinados pelos governos e pelo setor privado são um bom indicativo desse movimento”, acrescentou.

Com relação à Ucrânia, ele destacou a afirmação do presidente Lula de que os Estados Unidos e a União Europeia prolongam a guerra no leste europeu. Para o especialista, as declarações acabam por alinhar Lula à Rússia.

“É uma afirmação forte e bastante alinhada à retórica da Rússia. Ainda é cedo para cravar as consequências, mas é uma fala com potencial de estremecer as relações com a ainda maior potência mundial. Esse discurso está bem afinado ao que também tem dito o presidente chinês. Xi Jinping já afirmou, algumas vezes, que os Estados Unidos precisam parar de incentivar o conflito”.

O diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida, analisa que o relacionamento entre Brasil e China vai além do intercâmbio comercial. “Os acordos assinados devem fortalecer esse relacionamento estratégico ainda mais. Criou-se uma dupla dependência na relação bilateral da China e commodities brasileiras, grãos ,carne e minérios, e do Brasil em relação ao imenso saldo superavitário na balança bilateral de comércio. Esses fluxos não se interromperam na era Bolsonaro, mas outros desenvolvimentos não estritamente comerciais ficaram tolhidos pela animosidade criada pela família Bolsonaro”, emendou.

No entanto, corrobora, o ponto baixo da visita está em relação ao chamado “Clube da Paz”. “A diplomacia de Lula com respeito ao maior desafio à paz mundial desde a Segunda Guerra Mundial não se distingue muito da diplomacia oportunista de Bolsonaro, porque estamos ainda mais 'solidários' à Rússia. Essa iniciativa não tem nenhuma chance de prosperar e causa constrangimento com as potências ocidentais que amplamente apoiam a Ucrânia nos objetivos defensivos", afirmou.

“A postura do Brasil é quase um convite a rendição da Ucrânia perante Putin que perpetua atrocidades no país vizinho. Postura diplomática não é feita apenas de interesses imediatos mas também em termos de valores e princípios que sempre sustentaram nossa diplomacia. Desse ponto, a visita de Lula foi uma decepção registrada no comunicado final”, completou o diplomata.

Francisco Carlos Teixeira da Silva, do Programa de Pós Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observou que a viagem de Lula à China foi uma viagem de Estado, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, de teor mais político, com consultas mútuas sem resultados.

“Consolida uma mudança que ocorreu. Estamos em uma situação de consolidação de um perfil internacional muito claro, mesmo ainda com Bolsonaro e já desde o início do século XXI, de que a China é o maior parceiro econômico do Brasil. Os maiores parceiros do Brasil são China, Argentina, Mercosul e Estados Unidos numa terceira posição. O que temos que destacar em termos comerciais é que os investimentos americanos que eram dominantes no Brasil foram ultrapassados. Hoje os investimentos da China, do Japão e da União Europeia com destaque para Alemanha, França e Espanha são superiores aos investimentos americanos”, concluiu.

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