Se nas searas política e econômica não há uma marca significativa nesses 100 dias de governo, na área social — que inclui trabalho, moradia, direitos humanos, saúde e educação — o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu imprimir uma marca diametralmente oposta à gestão que o antecedeu. Isso, inclusive, é enfatizado na peça publicitária divulgada ontem, que enfatiza a preocupação com a cidadania.
No vídeo, que pode ser visto nas redes sociais, há uma preocupação em mostrar que o "o Brasil voltou" por meio do fomento a toda forma de cultura, sem discriminação; pelo respeito às premissas ambientais, em resposta às cobranças internas e externas pela preservação dos biomas do país; na retomada da tolerância religiosa, em função do profundo sincretismo que marca a sociedade brasileira; em função da atenção à saúde da população mais vulnerável; e, também, pela reinserção nos grandes temas globais, alguns, aliás, que marcam a atuação do país junto à comunidade internacional.
Com a adaptação de alguns versos de "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, a peça publicitária que celebra os 100 dias tenta imprimir ao governo a marca de que a preocupação, agora, é conjugar o social com o desenvolvimento. Tanto que, ao final, faz dois destaques: "cuidado e crescimento" e "pessoas e desenvolvimento" — algo que, por sinal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro desde que assumiu o comando do país.
"Obsessão"
"Minha obsessão nos primeiros três meses era retomar as políticas sociais que deram certo neste país. A minha obsessão, agora, é com o crescimento e com a geração de empregos. E tenho certeza de que vamos conseguir sucesso", destacou, no encontro com jornalistas, na quinta-feira passada.
Em pouco mais de três meses, Lula relançou o Bolsa Família, o Mais Médicos, o Minha Casa Minha Vida, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). A expectativa é de que, no balanço que deverá fazer amanhã — quando se completam os 100 dias —, anuncie o retorno do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), apresentado em 2007, que reunirá investimentos federais diretos, concessões e Parcerias Público-Privadas (PPP). Apesar de reeditar o conceito inicial, o plano será renomeado para incluir novas obras e concluir as que estão paradas.
Outro programa que deve ser reativado pelo presidente é o Água para Todos, com foco inicial na população rural ainda não atendida por rede de abastecimento e em situação de vulnerabilidade. Outra expectativa é sobre o Luz para Todos, criado em 2003, com o objetivo de levar energia elétrica para regiões rurais desassistidas.
O "mantra" do governo tem sido repetir que não adianta pensar em responsabilidade fiscal sem a contrapartida social. Mas isso não quer dizer que, mesmo com essa diretriz clara, não tenham deixado de haver curtos-circuitos. Lula repreendeu ministros que anunciaram o lançamento prematuro de programas sem o aval da Casa Civil e da Presidência — como Márcio França, dos Portos e Aeroportos, que em entrevista ao Correio, anunciou um programa de passagens aéreas a R$ 200. O presidente alertou que autores de "genialidades" precisam compartilhar as ideias para criar ações de governo.
Tais cobranças representam, também, que há pressa no atendimento às demandas da sociedade. No último dia 20, Lula reforçou que, fechados os 100 dias, será preciso entrar em uma nova etapa, fazendo a economia crescer e atendendo, também, a classe média. Para contemplar esse setor da sociedade, o governo pretende apresentar estudos para que a faixa de isenção do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) chegue aos R$ 5 mil — o que provocaria um reescalonamento nos demais percentuais de tributação. Também está no horizonte a ampliação de programas sociais como o Minha Casa Minha Vida, que, hoje, é voltado apenas para as camadas de mais baixa renda.
"Quando tivermos completado 100 dias, já teremos recolocado na prateleira todas as políticas públicas que criamos e deram certo. A partir dos 100 dias, vai começar uma nova etapa. Vamos ter que começar a fazer coisas novas, para nos dirigir um pouco à classe média brasileira, porque, no fundo, ela tem sofrido muito com os desgovernos deste país", criticou Lula, no encontro com os jornalistas da última quinta-feira.
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Equilíbrio fiscal para segurar avanço
Apesar de amplos setores da economia concordarem que é preciso equacionar a volta do crescimento com a inclusão social e a superação de mazelas crônicas do país — como a miséria, que recolocou o Brasil no Mapa da Fome das Nações Unidas —, há uma grande preocupação com o futuro das contas públicas. Para Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas, o desequilíbrio fiscal permite o retorno da inflação — que reduz ainda mais o poder de compra das camadas de baixa renda.
"A política social mais eficiente é a manutenção da inflação em patamar baixo, visto que a inflação alta penaliza, sobretudo, os menos favorecidos. E a inflação baixa tem como pressuposto a responsabilidade fiscal. Assim sendo, a área social está atrelada à área econômica", aponta.
Gil lembra que, com a PEC da Transição, o governo tem recursos suficientes para implementar as propostas apresentadas na campanha — como o aumento real do salário mínimo, reajuste dos ganhos dos servidores públicos e o fortalecimento de programas e ações orçamentárias. Porém, salienta que é necessário promover o reequilíbrio orçamentário.
"Algumas rubricas ainda estão com valores aquém das necessidades. É o caso das iniciativas relacionadas à prevenção de desastres, cuja verba em 2023 é a menor dos últimos 14 anos", alerta.
Saída confortável
Para a constitucionalista Vera Chemin, mestre em direito público administrativo pela Fundação Getulio Vargas (FGV), nesses 100 dias Lula procurou uma saída confortável do ponto de vista da economia. Recriou velhos programas sociais devido à incapacidade governamental de planejar, organizar e executar um projeto de curto, médio e longo prazo para o país.
"A velha premissa da esquerda, de uma intervenção cada vez maior do Estado no sistema econômico, provocará um aumento exponencial de gastos públicos, que terá de ser financiado por aumento de tributos ou aumento da dívida pública. Lula precisa, urgentemente, de uma revitalização no sentido de se conscientizar da importância de manter a responsabilidade fiscal e financeira", critica.
O cientista político Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, considera que devido a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro, a agenda do governo tornou-se mais reativa do que propositiva.
"Lula traz à tona o discurso da responsabilidade social tentando colar Bolsonaro como aquele que não se preocupava com os mais pobres. Por isso ele retoma a discussão e estabelece uma oposição entre a responsabilidade social e fiscal. O Brasil de hoje é diferente. Lula tem, agora, uma oposição mais aguerrida e saiu de uma eleição polarizada. Não existe arrecadação se a economia não se tornar aquecida. São desafios que mostram que ele precisa dar respostas efetivas e concretas. Os 100 dias ficaram no campo das propostas e da criação da narrativa. Fica muito a dever, essa marca ainda não chegou", observa. (IS)
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