Igualdade

"Trabalho por uma causa, não por nomes", diz Vera Lúcia Araújo, cotada ao STF

Segundo a jurista Vera Lúcia Araújo há uma hegemonia racista e machista para justificar o fato de nenhuma mulher negra ter sido ministra do STF até hoje

Raphael Felice
postado em 12/03/2023 17:11
 (crédito: Divulgação/EBC)
(crédito: Divulgação/EBC)

Moradora de Brasília desde os 18 anos, a baiana Vera Lúcia Araújo passou a ter o nome cotado -- até mesmo internamente no governo -- para assumir uma das possíveis indicações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar dos recentes acenos do presidente ao seu advogado pessoal, Cristiano Zanin, há uma forte movimentação para que a corte suprema do país tenha uma ministra negra pela primeira vez na história.

O nome de Vera ganhou força após aparecer em uma lista tríplice para compor o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no ano passado. Na ocasião, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) indicou o nome de André Ramos Tavares à corte eleitoral. Além disso, a jurista é uma das lideranças da publicação de um manifesto que sustenta a necessidade da nomeação de uma mulher negra na composição do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, Araújo ressalta que não está fazendo campanha.

O documento citado por Vera recebeu assinaturas de diversas entidades jurídicas, como um documento assinado por grupos como a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, o Grupo Prerrogativas, o Coletivo de Defensoras e Defensores pela Democracia, a Associação da Advocacia Pública pela Democracia e a Coalizão Nacional de Mulheres também defendeu que a posse de uma mulher negra no STF seria “a singular oportunidade de supressão da lacuna reveladora de baixa intensidade da democracia brasileira”. A possibilidade também foi citada pelo ministro do STF Edson Fachin na última quarta-feira (8), sobre análise do caso que define se suspeita motivada pela cor da pele pode anular provas em investigações. “Quem sabe, num lugar do futuro, colocará neste plenário uma mulher negra”, disse.

Muito além da representatividade, a baiana de Livramento de Nossa Senhora afirma que ter uma mulher negra no Supremo trará uma visão que a corte nunca possuiu em seu quadro. Para além da formação acadêmica dos juristas que são cotados, ela ressalta que a vivência de uma mulher negra trará para a suprema corte um olhar diferente, de forma a preencher lacunas da sociedade.

Entrevista // Vera Lúcia Araújo

A senhora veio ainda jovem para Brasília. Como é sua relação com a cidade?
Minha vida adulta foi toda em Brasília. Cheguei com 18 anos, fiz faculdade aqui e toda minha história profissional e de vida em Brasília. Eu sou de uma geração que teve como primeira tarefa na vida derrubar a ditadura militar. Antes mesmo de eu entrar para a faculdade de direito no Uniceub eu já tinha a consciência de que vivíamos num estado de exceção armado a margem da proteção de uma ordem constitucional e jurídica fiz movimento estudantil e vivi politicamente, tive formação política em todas essas etapas de formação no partido dos trabalhadores embora não esteja no PT e não tenha filiação há mais de 10 anos. Fui advogada de campanhas jurídicas do PT por muitas eleições aqui no DF e sempre advogando trabalhando a partir do direito fui advogada do sindicato dos jornalistas por muitos anos também, entre outras atividades.

Qual o foco da atuação da senhora na advocacia, no direito?
Não tenho tradição jurídica na família, minha mãe era professora e fiz uma trajetória exitosa no sentido de reconhecimento público e quanto ao meu compromisso e qualidade do meu desempenho profissional jurídico. Ao mesmo tempo, tenho uma vida de muita coerência em defesa da democracia. Como mulher negra, sempre atuei em movimento feminista, movimento negro, hoje integro a frente de mulheres negras do DF. O fato de ser profissional do direito me colocou sempre com uma participação política democrática também muito ativa. Com a crise democrática que viveu a partir do golpe contra a presidente Dilma em 2016 os juristas e as juristas democratas, fomos nos integrando e constituímos a Associação de Juristas pela Democracia, do qual componho a executiva nacional.

O que diz o manifesto para que o STF tenha uma mulher negra como ministra?
Em nenhum momento nosso manifesto pontua nomes, ele pontua uma causa. Tivemos manifestos com assinatura de várias outras entidades jurídicas como o grupo prerrogativas, defensoras e defensores públicos pela democracia. Cerca de 80 entidades de movimento negro e mulheres negras, agregando movimentos sociais em um manifesto em que a gente sustenta a necessidade que o STF venha a ter na sua composição uma jurista negra. Nós temos mulheres juristas negras extremamente qualificadas, nas academias e universidades também. Apenas o racismo e o machismo absolutamente hegemônico explicam ou tentam explicar que até hoje o STF não tenha tido a presença de uma mulher negra jurista. É preciso romper essa barreira que não é nada invisível, muito pelo contrário. por que não pode ter uma mulher negra no Supremo? Porque só se pensa em homens brancos, que neste momento, seria colocar mais do mesmo?

A senhora está fazendo algum tipo de campanha, tem procurado as pessoas do governo?
Eu não fiz nenhum movimento nem em direção ao STF ou ao poder Executivo ou Legislativo. O meu papel nesse processo tem se limitado a trabalhar a elaboração desse manifesto coletivo buscando a mim essas entidades jurídicas democráticas e colocar para os poderes jurídicos essa legítima postulação. A minha postulação é fazer, com as entidades, junto com companheiras e companheiros que também concordam com a pertinência dessa postulação de fazer esse debate com a sociedade. Em nenhum momento coloquei meu nome, não fiz nenhuma espécie de movimento. Saiu também na imprensa algo sobre a ministra Aniele Franco ter feito campanha pela minha indicação, mas eu nunca encontrei a ministra. Eu não fiz nenhuma espécie de movimento, de articulação. Não estou me colocando como candidata, estou colocada integralmente para a abertura deste legítimo debate e dessa a articulação pertinente e tardia da postulação de uma mulher negra na Suprema Corte. Temos um rol que vai sendo construído muito transparentemente no debate.

Além da questão da representatividade, essa luta é para haver um pensamento diferente dentro do STF em decisões sobretudo que afetem a população negra, que é maioria no país?
Essa é a perspectiva que justifica a indicação de uma mulher negra. Você pode levar uma pluralidade de outros pensares jurídicos e outras matrizes de reflexão jurídica. Qualquer homem e qualquer mulher, além da formação jurídica, também são influenciados pelo meio em que essa pessoa viveu. Isso é expressado em qualquer profissão exercida de forma qualificada. Quando você tem a apreciação, por exemplo, de uma situação de violência de gênero, é óbvio, que em tese, que uma mulher que tenha tido trajetória que tenha tido participação em movimentos feministas, tenha maior afinidade com as realidade experimentadas por mulheres que foram vítimas de violência. E no caso das mulheres negras que são ainda mais excluídas, que não encontram no sistema de justiça a mesma resposta que mulheres brancas têm quando vítimas de situação de violência. Uma mulher negra levará para a corte maior do judiciário, naturalmente a expressão dessas causas. Como disse a professora da USP Fabiana Seneri, você pensar em mais um homem branco para o STF é quase que um insulto à sociedade brasileira.

O debate vai ficar mais amplo…
O fazer jurídico pelo estado somente pode ser qualificado se você insere na cúpula um pensamento mais diverso, mais oxigenado, que carrega os saberes das nossas maiorias, que saiba o que que é o debate por exemplo, da intolerância religiosa a partir dos ataques vivenciados nos terreiros que ela requenta, que as mães de santo passam. você tema pluralidade do brasil que não é vista no supremo. O Brasil só tem homens brancos e algumas mulheres brancas?

A atual oposição, que compôs o governo Bolsonaro, reclama de um suposto ativismo judiciário. A senhora concorda?
Pela constituição o regime do estado democrático encontra no poder judiciário a consagração maior para guardar a nossa constituição e cabe ao Supremo Tribunal Federal dirimir e encontrar a solução para as divergências da sociedade. O déficit democrático que a gente passou nos últimos quatro anos em que o presidente e dia sim e outro também ameaçava golpear o estado democrático de direito. O cercadinho e até a relação que se estabelecia com a imprensa era demonstração contundente o quão não se colocava o governo para qualquer espécie de diálogo para respeitos de liberdades democráticas. O STF foi a grande salvaguarda da democracia brasileira. Sobre a politização do judiciário, não concordo. A política é que ficou profundamente esgarçada e somente restou o poder judiciário pelo Supremo, que é o grande guardião da carta constitucional para fazer a sustentação do estado democrático de direito.

A senhora foi indicada em uma lista tríplice para o Tribunal Superior Eleitoral no ano passado, como foi o processo e o sentimento?
Foi um projeto muito legítimo que eu tive muita atuação com a matéria eleitoral. Meu primeiro voto foi aos 26 anos só, porque aqui em Brasília não tinha eleição, tinha uma ditadura e ninguém votava, além do mais, o DF ainda não tinha representação democrática. E desde essa época eu atuei como advogada eleitoral, então foi natural que meu nome em algum momento, quando o STF a partir da solicitação do presidente do TSE de fazer uma lista mais ampla com mais mulheres e mulheres negras. Nós fomos quatro mulheres negras, eu a Aline Moreira, Simone Henriques e Edilene Lobo. E naquele processo, nessa lista, culminou meu nome integrando uma lista tríplice. Se você se desarma para permitir que os nomes se coloquem, não há bateria e não há desqualificação da lista. O meu nome desqualifica a lista de indicações ao TSE ou ao STF? Muito pelo contrário, eu tenho na bagagem uma atuação de direito eleitoral no ciclo completo que nem todo advogado eleitoral possui.

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