Um deputado estadual do Mato Grosso do Sul exibiu o livro Mein Kampf (Minha Luta, em alemão), escrito por Adolf Hitler, durante uma sessão na Assembleia Legislativa do Estado. João Henrique Catan (PL), reclamou de uma suposta proibição ao livro.
"Um juiz, talvez mais ditador que Adolf Hitler, suspendeu a entrada e as vendas do Mein Kampf", disse ele. "Aqui [Hitler] retrata suas estratégias para aniquilar, fuzilar o Parlamento e os direitos de manifestação popular."
Na realidade não existe proibição no Brasil — o livro escrito por Hitler tem direitos autorais em domínio público desde 2015 e é comercializado livremente no Brasil.
O que é proibido por lei é fazer propaganda do nazismo. A lei 7.716/89 determina que é crime "fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo".
A BBC procurou Catan para falar sobre o assunto, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. À CNN, ele disse que na verdade usou o livro para fazer uma "crítica às estratégias de Hitler" para "anular o Parlamento" e "corromper a democracia", comparando o ditador alemão com a Assembleia Legislativa do Estado.
Mas afinal, o que diz o livro e qual seu lugar na história?
O que diz o 'Mein Kampf'
O Mein Kampf é um livro autobiográfico e de manifesto político de Adolf Hitler publicado em 1925, oito anos antes de sua chegada ao poder, em 1933.
O governo nazista de Hitler foi responsável pelo assassinato de cerca de 6 milhões de judeus, incluindo crianças, no Holocausto.
Além dos judeus, o nazismo também promoveu a perseguição e o extermínio de milhares de pessoas com deficiência, eslavos (como russos e poloneses), homens gays, comunistas, Testemunhas de Jeová, pessoas dos povos romani (anteriormente conhecidos como ciganos), civis da URSS e prisioneiros de guerra - número que ultrapassa 10 milhões de pessoas, de acordo com as melhores estimativas históricas.
Hitler começou a escrever o texto na prisão, em 1924, quando estava detido após uma tentativa fracassada em golpe de Estado em 1923.
Editado por seu vice-líder Rudolf Hess, inicialmente o livro vendeu pouco, mas depois da subida de Hitler ao poder, em 1933, ele se tornou um best seller no país.
No livro, Hitler fala sobre sua infância, sua trajetória pessoal até então, seus planos para a Alemanha, seu antisemitismo e seu anticomunismo.
Ele culpa os judeus, os marxistas e o Parlamento pelos problemas enfrentados pelo país na época da República de Weimar (que havia começado em 1918 e iria durar até 1933, quando Hitler subiu ao poder).
O antissemitismo é um dos temas centrais da obra, segundo o trabalho do historiador britânico Ian Kershaw, um dos principais especialistas do mundo em Terceira Guerra Mundial e nazismo.
Ao mesmo tempo em que demonstrava seu ódio ao povo judaico, Hitler via os judeus como "todo-poderosos", explicou Kershaw. O nazista escreveu que os judeus controlavam tanto o capitalismo do ocidente quanto o comunismo na União Soviética e eram responsáveis por "destruir a Alemanha".
Hitler afirmava que existia um povo "ariano" superior a outras raças e grupos que considerava fracos e inferiores.
No livro, ele também defendia a colonização e domínio de territórios vizinhos para "realizar todo o potencial da Alemanha" - a teoria do "espaço vital" que foi uma das bases do expansionismo da Alemanha nazista, culminando na Segunda Guerra - e descrevia sua visão para organização do nazismo e atuação do partido.
O livro após a Segunda Guerra
No fim da Segunda Guerra Mundial, Hitler se matou para não ser capturado. Os direitos autorais do livro passaram para o Estado da Baviera, que não permitia a publicação de novas edições por temer seu poder de incitar ódio.
No fim de 2015, os direitos da obra caíram em domínio público. Em alguns países sua recirculação foi restringida. Na França e na Alemanha foram publicadas versões críticas comentadas.
Apesar da importância histórica, o livro de Hitler é considerado um trabalho de pouca relevância literária.
O texto recebeu críticas negativas até mesmo de aliados do nazismo. Segundo a biografia do ditador italiano Benito Mussolini publicada por Denis Mack Smith em 1983, o ditador fascista teria dito que o livro era tão "tedioso" que ele não tinha conseguido ler até o fim e que era cheio de ideias que eram "nada mais do que clichês de senso comum".
Desde o fim da guerra, o livro foi muito estudado por diversos pesquisadores de diversas escolas de pensamento, desde conservadores como Erik von Kuehnelt-Leddih a progressistas como George Orwell.
Segundo o historiador Ian Kershaw, embora a figura de Hitler seja "única" e ele tenha sido uma força motriz central, não devemos reduzir os horrores nazismo à sua figura, sendo importante estudar o contexto da época de forma mais ampla.
"Hitler era um fanático político com imenso poder de Estado, não um louco", disse ele em uma aula transmitida pela BBC Radio Four em 2005.
"Mas a particularidade da ditadura nazista se explica menos [pelo caráter de Hitler e mais] pela forma específica de governo que ele personificava e seu efeito corruptor nos instrumentos e mecanismos do Estado", disse Kershaw em uma entrevista em 2009.
"Tanto a ampla aceitação do 'projeto' de 'salvação nacional', visto como personificado em Hitler, quanto a internalização dos objetivos ideológicos por uma nova e moderna elite do poder, operando ao lado de velhas elites enfraquecidas por meio da sofisticação burocrática de um estado moderno, foram necessários (para que o nazismo tenha chegado onde chegou)", afirmou.
- Este texto foi publicado em
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv232dj3nvpo
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