Publicado em 1969, o livro Mulher, objeto de cama e mesa, de Heloneida Studart, fez um sucesso fabuloso durante toda a década de 1970, coroando anos de pesquisas e uma trajetória de mulher e jornalista, numa época em que havia ainda muito machismo nas redações, então um ambiente predominantemente masculino. No texto, Heloneida denuncia o tratamento dado à maioria das mulheres de sua geração: dona de casa, doméstica, "um ser desinteligente por natureza".
Redatora de uma revista feminina, Heloneida observou que os temas abordados eram sempre os mesmos, do tipo como prender seu marido, realçar a própria beleza, reformar um vestido etc. Para ela, "a mulher era tratada como retardada mental", era educada para ficar em casa, cuidar dos filhos, do lar e do seu macho. Até o estudo era visto como uma ameaça ao matrimônio e à família.
"À mulher moderna caberia mudar seu papel de mulher na sociedade, mas o seu esforço é considerado um fracasso. Agradar ao seu amor é tudo que interessa", desabafava. A igualdade dos sexos firmada em lei não atravessava as paredes dos lares. Heloneida também criticava as mulheres que se orgulhavam da sua dependência e destacava que a pílula anticoncepcional as havia livrado do "papel de galinhas poedeiras". Seu livro, em linguagem nua e crua, circulava quase como uma publicação clandestina, porque era visto como uma transgressão por pais, irmãos, maridos, noivos, namorados. Mesmo assim teve o papel de estimular as mulheres, jovens ou não, a não aceitarem mais aquela situação.
Façam o que eu faço, dizia Heloneida, consciente de que sua trajetória existencial era um exemplo de emancipação feminina. Ainda estudante do colégio de freiras Imaculada Conceição de Fortaleza, escreveu a sua primeira história: "A menina que fugiu do Rio". Aos 16 anos, mudou para o Rio de Janeiro. Em 1953, publicou o seu primeiro romance, intitulado A primeira pedra. Em 1957 foi premiada pela Academia Brasileira de Letras com Diz-me teu nome.
Nos anos 1960, passou a trabalhar no antigo Correio da Manhã, um dos mais importantes jornais do país; depois, foi redatora na extinta revista Manchete, que também marcou época. Em 1969, foi presa por razões políticas; no presídio São Judas Tadeu, escreveu Quero meu filho e Não roubarás. O estandarte da agonia, um de seus últimos textos, é uma biografia da amiga Zuzu Angel, que morreu num acidente de carro quando investigava a morte de seu filho, Stuart Angel, sequestrado e morto pelo regime militar.
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Violência
Com abertura, Heloneida Studart se elegeu deputada estadual no Rio de Janeiro em 1978, pelo MDB, com 60 mil votos, numa campanha política memorável, na qual foi a única mulher entre os parlamentares e candidatos liderados pelo senador Nelson Carneiro (MDB) a enfrentar cães e policiais militares numa passeata de campanha na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio. Reelegeu-se para a Assembleia Legislativa por mais cinco mandatos, os últimos pelo PT.
Faleceu em 3 de dezembro de 2007, como uma das parlamentares mais atuantes e líder feminista de sua geração, em consequência de um infarto cardíaco. Deixou como legado o Centro da Mulher Brasileira, considerada a primeira entidade feminista do Brasil, da qual foi uma das fundadoras, além do Centro Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), projeto de sua autoria.
Por ironia, em julho do ano passado, Heloneida Studart voltou a ser destaque na imprensa, porque o Hospital da Mulher de São João de Meriti, que leva o seu nome, fora palco de estupros sistemáticos de pacientes pelo anestesista Giovanni Quintella. Ontem, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que garante às mulheres o direito de indicar acompanhante durante consultas e exames para os quais haja necessidade de sedação. O substitutivo da deputada Bia Kicis (PL-DF) para o Projeto de Lei 81/22, do deputado licenciado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), apensou outros sete projetos e recebeu amplo apoio das deputadas de todas as tendências. A proposta irá ao Senado Federal.
A contrapartida dos avanços e das conquistas das mulheres vem sendo o recrudescimento da violência contra elas, inclusive dos feminicídios, por parte daqueles que não aceitam ou não compreendem as mudanças de nosso tempo. Ontem, na abertura do evento Correio Debate — Combate ao Feminicídio: uma responsabilidade de todos, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, alertou para o fato de mesmo com uma lei que pune a morte de mulheres pelo gênero esses casos seguem em crescimento ano a ano. "Não é mimimi. As mulheres continuam morrendo pelo simples fato de ser mulher", ressaltou a governadora do Distrito Federal em exercício, Celina Leão, durante o evento. "Temos, atualmente, 297 órfãos do feminicídio. É um crime continuado, não finaliza com a morte da mulher", alertou.
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