Adeus, senhor presidente, do ex-ministro de Planejamento chileno Carlos Matus, é um romance-ensaio inspirado no governo de Salvador Allende, que assumiu o poder com grandes expectativas de mudança e foi destituído no sangrento golpe de Estado do general Augusto Pinochet. Na ficção, o protagonista é um ex-presidente que fracassou, e seu consolo é que o sucessor também está fracassando em meio a reuniões ministeriais surreais e até a uma tentativa frustrada de golpe militar. Sindicalistas, políticos de esquerda e de direita, empresários, tecnocratas, acadêmicos, idealistas, jornalistas e amigos corruptos tecem a trama, em meio a polêmica sobre como equilibrar as finanças e estimular o crescimento.
Em outra obra — O líder sem Estado-Maior —, Matus faz uma critica profunda aos governantes latino-americanos, na qual compara seus imponentes e frágeis gabinetes a uma "jaula de cristal", o presidente se isola e se torna prisioneiro de uma pequena corte. "Um homem sem vida privada, sempre na vitrine da opinião pública, obrigado a representar um papel que não tem horário. Não pode aparecer ante os cidadãos que representa e dirige como realmente é, nem transparecer seu estado de ânimo."
"O governante sente-se satisfeito com seu gabinete: nem sente que precisaria melhorá-lo nem saberia como fazê-lo porque o desacerto está no comando", descreve. Na tentativa de realizar o impossível, continua Matus, "deteriora a governabilidade do sistema e não aprende, porque não sabe que não sabe. Encontra-se entorpecido por uma prática que acredita dominar, mas que, na realidade o domina. Acumula experiência, mas não adquire perícia; tem o direito de governar, sem ter a capacidade para governar. Nesse caso, pode ser que seu período eficaz de governo resulte nulo, pela impossibilidade de combinar, ao mesmo tempo, o poder para fazer e a capacidade cognitiva para fazer".
Com menos de 50 dias de governo, é muito cedo para um diagnóstico sobre o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nessa direção. Entretanto, a "jaula de cristal" parece em construção. Velhos companheiros do presidente da República, sobreviventes da crise ética, do colapso do governo Dilma Rousseff e do tsunami eleitoral de 2018 que levou Jair Bolsonaro ao poder, avaliam que Lula não tem um estado-maior. Aparentemente, não o deseja, embora não falte gente capaz na sua equipe de governo. Até agora, Lula não cometeu nenhum erro grave, mas a repetição de pequenos erros também desgasta.
É preciso distanciamento dos interesses imediatos para uma boa avaliação do processo em curso. A primeira comparação deve ser entre o desgoverno que tínhamos, com um projeto político "iliberal", e o novo governo, democrático e civil. A mudança de rumo foi de 180 graus, do desmonte das políticas públicas e do permanente conflito institucional para o resgate dos direitos humanos e uma relação de equilíbrio e harmonia entre os Poderes.
Entretanto, com apenas uma semana de governo, Lula se viu diante de uma tentativa de golpe de Estado, cuja face mais visível foi a depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), em 8 de janeiro. A resposta democrática civil foi a demonstração de força das nossas instituições políticas; e a solidariedade internacional nos reposicionou no Ocidente.
Cadeias globais
Políticas externa e interna não são assimétricas. A viagem de Lula aos Estados Unidos consolidou sua aliança com o presidente democrata Joe Biden, em torno da defesa da democracia e da questão ambiental. Retirou o Brasil da rota dos regimes "iliberais" do Oriente, mas isso não significa a superação das contradições e conflitos da globalização nem supera as dificuldades da nossa inserção nas novas cadeias de produção global.
Nosso principal parceiro comercial não são mais os Estados Unidos, é a China. Parceiros comerciais mais competitivos dominaram o nosso mercado e deslocaram a produção brasileira de mercados tradicionais de nossas exportações industriais, como a América Latina. Esse é o grande cenário.
A China emerge como grande potência do Oriente e emula o Ocidente. Os países do G-7, há 30 anos, tinham cerca de 70% da renda mundial. Hoje, detêm algo em torno de 45% ou menos. Esse deslocamento de renda se deveu à fragmentação da produção e à expansão de cadeias globais de valor.
Além da China, mais cinco países em desenvolvimento se beneficiaram fartamente desse processo: Coreia do Sul, Índia, México, Polônia e Tailândia. O Brasil ficou à margem, desperdiçou o ciclo de commodities ao aumentar o consumo sem ampliar seus investimentos. Tentou adensar cadeias locais antes de se integrar ao dinâmico processo de formação de cadeias globais e fracassou.
O discurso de Joe Biden sobre o Estado da Nação aponta aos Estados Unidos o caminho da reverticalização de suas cadeias de produção. Isso oferece mais ou menos oportunidades ao Brasil? Em vez de questionar a integração, precisamos estudar como nos inserirmos nas novas cadeias globais da indústria 4.0 e transitar para a economia verde, por meio da democracia, explorando a formação de cadeias de valor regionais, a nova tendência da globalização. É preciso um novo consenso nacional.
Muito se discute a questão dos juros altos e os desencontro entre as políticas econômica e monetária. Lula se depara com a ameaça de recessão e a emergência da situação social no país, cujos exemplos extremos são 40 mil moradores de rua na cidade de São Paulo, a nossa maior e mais rica metrópole, e o genocídio dos ianomâmis em Roraima.
O governo estuda três medidas para ativar a economia: a elevação do salário mínimo, a mudança na tabela do Imposto de Renda e a rolagem das dívidas de 80 milhões de cidadãos insolventes. São medidas emergenciais, focadas nos brasileiros que mais precisam do governo, porém, recolocam em discussão a relação entre equilíbrio fiscal e gasto público.
Em tempo: Volto depois do carnaval.
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