Lisboa — Quem acompanhou a tumultuada transição do governo de Jair Bolsonaro, que até hoje não admitiu publicamente sua derrota, para a administração de Luiz Inácio Lula da Silva teve a certeza dos retrocessos enfrentados pelo Brasil nos últimos quatro anos. Foi um contraste enorme com o que se passou anos atrás, quando o país deu uma aula de civilidade ao mundo. O Brasil estava prestes a mergulhar no precipício, engolfado por uma crise energética e pelas incertezas do que seria o primeiro governo do petista. Mas a grandeza de dois líderes não só se sobrepôs às diferenças ideológicas, como permitiu que a economia superasse as dificuldades e a maior conquista do país, o real, saísse incólume.
Detalhes nunca antes revelados desse momento são contados com riqueza pelo jornalista João Borges no livro Eles não são loucos, os bastidores da transição presidencial FHC-Lula, que será lançado nesta terça-feira, 7 de fevereiro, em Brasília, a partir das 19h, na Livraria da Travessa do Casa Park. O autor ocupava, naquele momento, um cargo estratégico, de assessor de imprensa do Banco Central. Com acesso privilegiado a reuniões muito restritas, desconhecidas até hoje da imprensa, ele testemunhou negociações que permitiram ao Brasil se manter de pé. Borges conta que um dos momentos mais marcantes naquele período foi quando o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC foi obrigado a aumentar a taxa de juros para tentar conter o impacto do racionamento de energia sobre a inflação.
“Foi particularmente dolorosa a reunião do Copom que discutiu o impacto do racionamento de energia em abril de 2001. A economia havia crescido mais de 4% no ano anterior, e todas as projeções para 2001 e 2002 também mostravam desempenho acima de 4%. Com a escassez de energia, reduzindo a oferta de bens e serviços, foi preciso aumentar a taxa de juros para conter a demanda e, assim, evitar que a inflação fugisse do controle. Foi como se o cargueiro Brasil tivesse sido obrigado a lançar em alto mar uma carga preciosa, uma riqueza imensa”, relata. “Também foi muito tenso o momento em que o mercado, por medo de calote, começou a rejeitar os títulos públicos que venceriam a partir de janeiro de 2003. O risco de um colapso no financiamento da dívida foi imenso”, acrescenta.
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Lula venceu as eleições em segundo turno e o fim do mundo que se prenunciava não se confirmou, justamente porque Fernando Henrique Cardoso, com seus principais assessores econômicos, Pedro Malan (então ministro da Fazenda) e Armínio Fraga (presidente do BC), se antecipou, preparando uma transição na qual se pode detalhar à equipe de Lula a real situação do Brasil. Homem forte do petista, Antônio Palocci, que viria a ser ministro da Fazenda a partir de 2003, reforçou o ajuste fiscal, e, à frente do BC, Henrique Meirelles conduziu a política monetária de forma autônoma, o que, nos anos seguintes, levou a inflação para o centro da meta. “É uma pena estarmos discutindo temas de 20 anos atrás.” A seguir, trechos da entrevista de Borges ao Correio.
Quando surgiu a ideia de escrever o livro?
A ideia de escrever o livro me ocorreu no dia 1º de janeiro de 2003, data da posse de Lula. O período eleitoral de 2002 foi de grande intensidade e riqueza. Percebi que, mesmo com todo engajamento da mídia, muitos episódios ficaram como que submersos, abaixo da superfície turbulenta do noticiário, que a cobertura do dia a dia não tinha condições de alcançar. Eu me encontrava numa posição privilegiada. Participava de reuniões e via por dentro como o cenário evoluía. Então, pensei: isso não ficar esquecido para sempre.
Por que esperou tanto tempo para relatar fatos tão marcantes?
A ideia ficou latejando nos meus sonhos até 2017. Quando foi lançado “Anatomia de um desastre”, livro que eu, Cláudia Safatle e Ribamar Oliveira escrevemos, levei a ideia ao editor Bruno Porto, da Companhia das Letras, que me pediu um resumo da trama. A proposta foi aceita e então comecei a trabalhar.
Foi difícil reconstituir a história? Por quê?
Meu plano era entregar o texto a tempo de ser publicado ainda em 2018. Que ingenuidade! A tarefa era muito mais complexa do que supunha. Mesmo trabalhando aos sábados, domingos, feriados e férias, foi impossível concluir. Foram mais de 100 entrevistas, recuperação de informações publicadas na época… O mais fácil foi o que tinha em memória ainda viva daqueles dias. Cruzar as informações das diversas fontes para que não houvesse nem lacuna nem inconsistência na trama que envolvia tantos personagens em tantas circunstâncias. Quis o destino e as dificuldades da vida que a edição só se tornasse possível nessa virada de 2022 para 2023. Ou seja, 20 anos depois da primeira eleição de Lula à presidência. O contexto político e institucional recente, creio, valorizou o resgate histórico de 2002/2003.
Qual foi o momento mais tenso que viveu no governo?
Foram tantos. Mas me permito citar três momentos. Foi particularmente dolorosa a reunião do Copom que discutiu o impacto do racionamento de energia em abril de 2001. A economia havia crescido mais de 4% no anterior e todas as projeções para 2001 e 2002 também mostravam desempenho acima de 4%. Com a escassez de energia, reduzindo a oferta de bens e serviços, foi preciso aumentar a taxa de juros para conter a demanda e, assim, evitar que a inflação fugisse do controle. Foi como se o cargueiro Brasil tivesse sido obriga lançar em alto mar uma carga preciosa, uma riqueza imensa. Também foi muito tenso o momento em que o mercado, por medo de calote, começou a rejeitar os títulos públicos que venceriam a partir de janeiro de 2003. O risco de um colapso no financiamento da dívida foi imenso. Por fim, o dia 10 de outubro de 2002, cinco dias depois do primeiro turno da eleição, quando o dólar bateu em R$ 4. A escalada de piora, com a proximidade do segundo turno que consagraria a vitória de Lula, parecia não ter fim.
Muitos historiadores políticos dizem que a transição entre o governo de FHC e o de Lula foi uma aula de democracia? Como vê isso?
Foi um momento exemplar para a nossa ainda hoje jovem democracia. Os interesses da nação e, portanto, do povo, se sobrepuseram à disputa pelo poder. As fotos editadas no livro mostram um feliz e sorridente Fernando Henrique Cardoso no dia em que passou a faixa presidencial a Lula.
Lula, como presidente, não só manteve os pilares da economia de FHC, como os consolidou. Por que isso foi importante?
O sucesso econômico de um país depende de muita coisa. Dentre elas, que a política econômica preserve o que está bem alicerçado e ajuste o que for necessário. Eu diria que Antônio Palocci teve papel ultra-relevante nesse processo. No diálogo com Pedro Malan e Armínio Fraga, entendeu bem o quadro real da economia, que se apresentava bem em seus fundamentos, mas sofria terrivelmente com as incertezas que se projetavam para 2003. Com a escolheu para a Fazenda de uma equipe técnica, somada à nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central e a decisões bancadas por Lula, a economia retomou a rota do crescimento e da estabilidade inflacionária.
Por tudo o que viu, acreditava que um governo do PT pudesse ser responsável fiscalmente? Por quê?
Eu, particularmente, vivi as minhas dúvidas iniciais. Mas devo esclarecer que Armínio Fraga, com quem tinha um convívio muito próximo no Banco Central, passou a ficar muito confiante à medida em que se aprofundava o diálogo com Palocci, que era seu principal interlocutor no governo que se formava.
Quais foram os personagens mais marcantes da transição do governo FHC para o de Lula?
Além de Fernando Henrique e Lula, Pedro Malan, José Dirceu, Armínio Fraga, Antônio Palocci, Luiz Gushiken e Pedro Parente.
Como compara a transição de FHC para Lula com a de Bolsonaro para o petista?
Incomparável. Sob todos os aspectos.
O Brasil aprendeu as lições do passado? Por que temas de 20 anos atrás continuam na pauta?
O país viveu um período auspicioso a partir do Plano Real, de 1994, no final do governo Itamar, até 2010, no final do governo Lula. Depois, fomos nos desgovernando e chegamos a esse ponto: discutir problemas de 20 anos atrás. Uma pena, pois deveríamos estar direcionando nossas energias para outros temas.
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