A linha que separa a retórica política e o tecnicismo governamental guarda grande capacidade de provocar ruídos. O debate puxado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a conveniência da atual política de juros do Banco Central — que envolve, inclusive, a autonomia da autoridade monetária frente ao Executivo — está longe de ser um caso isolado ou um fenômeno dos dias atuais.
Nos últimos 10 anos, a manutenção do capital político, em detrimento das recomendações técnicas, marcaram os governos de Jair Bolsonaro (PL) e de Dilma Rousseff (PT). A ex-presidente, por exemplo, bancou a política de expansão de gastos nos primeiros quatro anos de governo. Ela foi reeleita, mas, no segundo mandato, diante do recrudescimento dos desequilíbrios fiscais e da escalada da inflação, tentou dar uma virada ortodoxa ao chamar Joaquim Levy, "o homem do ajuste", para calar as críticas que minavam sua base no Congresso. Ao fim, acabou tragada pela instabilidade política que levou ao impeachment. Também em sua gestão, o Brasil perdeu o grau de investimento que atestava a solidez das contas públicas.
Nova tentativa de ajuste das contas públicas foi feita na gestão de Michel Temer (MDB), com a aprovação, na Câmara e no Senado, da Lei do Teto de Gastos, que funciona até hoje como âncora fiscal. Outra decisão do governo do emedebista que provoca reflexos até hoje é a paridade de preços dos combustíveis com as cotações internacionais, que o atual governo Lula tenta alterar. Ambos os casos ilustram aderência de Temer à cartilha de sua equipe econômica.
No governo Bolsonaro, retornaram as tensões entre áreas técnicas e posicionamentos político-ideológicos do grupo que assumiu o poder. Os ruídos também. Na maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos, Bolsonaro assumiu uma postura negacionista diante da gravidade da pandemia de covid-19, perdeu dois ministros da Saúde ligados à área médica, debochou do uso de máscaras e atrasou a compra de vacinas, não sem antes questionar sua eficácia.
Os exemplos acima mostram que o embate político atropelou o viés técnico e gerou desgastes para o governo de plantão, contaminando e fragilizando as relações do Executivo com as instituições. Lula já não encontra unanimidade em suas críticas a Campos Neto, nem mesmo dentro de sua própria base aliada, incluindo congressistas e ministros. Na semana passada, o presidente disse não existir "nenhuma justificativa" para a Selic se manter no atual patamar de 13,75% ao ano. "Não é o Lula que vai brigar, não. Quem tem que brigar (para baixar a taxa de juros) é a sociedade brasileira", disse.
A autonomia do Banco Central, assegurada por lei, também entrou no pacote de críticas, com aval de ministros como Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública. "Todos os órgãos administrativos estão sob a autoridade do chefe de governo delegatário da vontade popular. E nem o mandato presidencial é incondicional e ilimitado", declarou o ministro, que complementou: "Autonomia não é soberania"
Aliado de Lula, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) é a favor da manutenção da autonomia do BC, assim como os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Ninguém admite pautar uma nova mudança da lei que blinda o banco Central de ingerências políticas.
Em conversas com fontes, o Correio apurou que, em 2016, Lula chegou a pedir pessoalmente a Renan Calheiros para que a autonomia do BC fosse pautada no Senado, quando o parlamentar era presidente da Casa. A "soberania" do BC só foi consolidada em 2021. Antes, havia sido defendida publicamente por Lula em 2013, e pelo PT, entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000.
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