Um mês após os ataques à Praça dos Três Poderes que ele mesmo classifica como "uma tentativa de golpe" e 20 anos depois de entrar na Casa Branca pela primeira vez, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) volta nesta sexta-feira (10/2) à sede da presidência dos Estados Unidos.
A visita à Washington tem grande simbolismo: Lula se encontrará com seu colega Joe Biden depois que ambos derrotaram nas urnas expoentes mundiais do populismo de direita (Donald Trump e Jair Bolsonaro) e assumiram seus cargos envoltos por denúncias infundadas de fraude eleitoral que levaram a ataques contra o Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, e contra as sedes do Congresso, Presidência e Supremo Tribunal Federal em 8 de janeiro de 2023.
A foto do aperto de mãos de ambos no comando de seus países é vista pelos presidentes como um testemunho de que a vontade popular prevaleceu. O risco, porém, é que ambos se contentem "apenas" com a potência da imagem - e deixem de pôr para andar iniciativas mais concretas, dizem diplomatas e analistas brasileiros e americanos ouvidos pela BBC News Brasil.
"Há um risco significativo de que a reunião na sexta-feira seja uma boa sessão de fotos, um belo conjunto de abraços e apertos de mão, mas não muito mais que isso. Então vejo com um ceticismo inicial (as perspectivas do encontro)", afirma Ryan Berg, diretor do programa de Américas do Center for Strategy and International Studies (CSIS), baseado em Washington.
'Um reset na relação'
Em briefing à imprensa na manhã desta terça (7/2), o Itamaraty reconheceu que até aquele momento não havia previsão para anúncio de acordos ou cooperações entre os dois países. E afirmou que o encontro representava um "reset" em uma relação que esteve em "banho-maria" no período em que os presidentes eram Biden e Jair Bolsonaro.
Bolsonaro lançou dúvidas sobre a legitimidade da eleição de Biden, ecoando acusações feitas por Trump, e levou semanas para reconhecer a vitória do democrata à Casa Branca. O resultado foi um hiato de um ano e meio sem contato direto entre os presidentes de Brasil e EUA.
A chegada de Lula ao poder já começou a alterar o cenário. Entre a vitória do petista nas urnas, no fim de outubro, e a visita dele à Casa Branca, agora, os dois presidentes já se falaram por telefone em duas ocasiões.
"Essa oportunidade de interação, engajamento entre o presidente Lula e o presidente Biden na Casa Branca é um aspecto central da visita", afirmou o embaixador Michel Arslanian Neto, secretário de América Latina e Caribe do Itamaraty.
E seguiu: "há uma perspectiva de reativação e atualização, conforme o caso, da institucionalidade da relação. É uma relação que conta com muitos foros para avançar, o plano comercial, os direitos humanos, o meio ambiente. Então, a ideia também é estabelecer um cronograma de troca de visitas entre as autoridades para dar um impulso a essa relação".
Em 2024, Brasil e EUA completam 200 anos de relação e Lula deverá convidar Biden a visitar Brasília para marcar esta data.
Mas se querem ter como legado mais do que a vitória sobre os incumbentes da direita radical, Lula e Biden compartilham um duplo desafio: ambos precisam convencer sua própria população de que a democracia pode entregar melhora material na qualidade de vida e de que faz sentido (inclusive financeiro) o combate às mudanças climáticas.
E as circunstâncias parecem apontar que a tarefa pode ser mais fácil em parceria do que isoladamente. EUA e Brasil são as duas maiores democracias presidenciais do mundo e se agora têm tido crises semelhantes, há quem advogue que as soluções também podem passar por caminhos comuns.
Os presidentes devem discutir, por exemplo, planos de combate às informações falsas e políticas para as redes sociais. O tema também deve ser parte da agenda de Lula com uma comissão de congressistas americanos liderada pelo senador Bernie Sanders. O fortalecimento da democracia é tópico anunciado na agenda dos dois lados.
Além disso, ambos os países têm o meio ambiente e as mudanças climáticas como agenda doméstica prioritária. Durante sua campanha presidencial, ainda em 2020, Biden afirmou publicamente que gostaria de lançar um fundo internacional para a preservação da Amazônia.
A negociação entre a gestão Biden e o governo Bolsonaro, no entanto, nunca chegou a produzir um acordo. O governo americano atrelava a liberação de recursos a números concretos de redução de desmatamento - o que Bolsonaro não entregou. Lula assumiu a presidência prometendo desmatamento zero no bioma.
"Agora é diferente. A gente entende que o governo ainda mal começou, mas já mostrou suas credenciais ambientais, fez coisas concretas, como as operações em Roraima, e isso certamente será levado a Biden pelo presidente Lula", afirmou um embaixador brasileiro que participa da preparação da viagem, citando as ações que revelaram o quadro de crise humanitária na reserva indígena Yanomami e a atuação do governo federal para retirar da área dezenas de milhares de mineradores ilegais.
Para parte da diplomacia brasileira, as condições dos americanos para que o anúncio de uma cooperação na Amazônia fosse feito já estariam satisfeitas a ponto de permitir algum anúncio.
O Enviado Especial Climático de Biden, John Kerry, iria ao Brasil no começo de fevereiro mas adiou a visita para estar presente no encontro bilateral entre os presidentes.
"Não seria surpresa para mim se algum tipo de acordo ambiental acabar sendo anunciado", afirmou à BBC News Brasil Abrão Neto, CEO da Amcham Brasil, entidade dedicada ao comércio entre EUA e Brasil que reúne cerca de 4 mil empresas, representativas de 1/3 do PIB brasileiro.
Para Abrão Neto, ex-secretário de comércio exterior na gestão Temer, ainda que sem anúncios, não se pode reduzir o encontro a uma oportunidade de foto.
"Há temas convergentes na lista de prioridades domésticas dos países e com interesse real de avançar pela primeira vez em muitos anos. Esperar que haja uma lista de resultados concretos não é realista, mas não se pode subestimar a importância do apoio político no mais alto nível porque é esse comando que faz as máquinas burocráticas girarem", diz Neto.
Embora qualquer ideia de um tratado de livre comércio entre os dois países esteja descartada, Neto afirma que o bom momento político e a cooperação em áreas como o meio ambiente e as mudanças climáticas podem se traduzir muito rapidamente em oportunidade de negócios para os dois países.
Discordâncias: Rússia, Venezuela, China, Cuba e brasileiros deportados
Se há claras prioridades convergentes, também há áreas de óbvias discordâncias. E embora o Itamaraty procure diminuir o peso dos assuntos - dizendo que os mandatários se concentrarão nos pontos em que concordam e mencionando as qualidades de Lula na diplomacia presidencial - algumas questões preocupam os americanos.
"O pior cenário é se Biden quiser discutir com Lula sobre Ucrânia e Venezuela", apontou um experiente embaixador, citando dois temas nos quais os discursos do americano e do brasileiro não estão bem afinados.
Enquanto Biden vê a Guerra na Ucrânia como uma batalha entre as democracias ocidentais e o imperialismo russo e está disposto a doar até tanques ao país de Volodymyr Zelenski, Lula acaba de se recusar a enviar munições compradas pelo Brasil para a Ucrânia após um pedido feito pelo chanceler alemão Olaf Scholz, em visita recente a Brasília. E tem repetido o bordão de que "quando um não quer, dois não brigam", o que iguala a posição da Ucrânia, cujo território foi invadido, ao da Rússia, autora da agressão - uma interpretação recusada pelos americanos.
"Não acredito que o presidente Biden venha me convidar para participar do esforço de guerra pela Ucrânia, porque o Brasil não participará. (...) O chanceler alemão queria que nós vendêssemos para a Alemanha a munição que o Brasil tem. Depois ele me disse que essas munições seriam entregues à Ucrânia. Eu disse para ele que o Brasil não iria vender as munições porque se um russo for morto por uma munição que saiu do Brasil, o Brasil estará participando da guerra, e eu não quero que o Brasil participe da guerra porque nós precisamos de alguém querendo construir a paz neste mundo", disse Lula em entrevista a veículos independentes e influenciadores digitais, como o site Opera Mundi.
Mesmo fornecendo armas para os ucranianos, EUA e aliados da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) negam que façam parte da guerra. Rússia os acusa de serem parte do conflito.
No ano que vem, o Brasil presidirá o G20 e Lula tem dito que espera usar a posição para tentar costurar uma negociação de paz entre Ucrânia e Rússia. A iniciativa é vista com ceticismo pelos americanos.
O Brasil é grande comprador de fertilizantes russos e aliado de Moscou nos BRICS, bloco composto também por Índia, África do Sul e China, que Lula pretende fortalecer, o que incomoda os EUA, que preferiam ver o Brasil mais alinhado aos interesses americanos e europeus na arena internacional.
"Os EUA sabem que o que aconteceu no governo Bolsonaro, esse alinhamento automático que houve, foi uma excepcionalidade. Estamos apenas voltando à diplomacia brasileira tradicional, ao papel multilateral que o Brasil tem", diz um embaixador brasileiro reservadamente.
E se a China é hoje a principal antagonista dos EUA - e foi alvo essa semana de acusações de que teria enviado um balão de espionagem, segundo os EUA, para sobrevoar o território americano, ela também é o principal parceiro comercial do Brasil. Xi Jinping deve receber a visita de Lula em Pequim já em março.
Os diplomatas brasileiros esperam que o tema dos balões chineses - um dos quais teria sido visto sobrevoando a América Central e do Sul - sequer seja tratado entre Biden e Lula.
Nos últimos anos, Washington pressionou Brasília a barrar a participação chinesa no leilão do 5G e em outras iniciativas de infraestrutura. O governo Lula tem tentado deixar claro que não se alienar nem por um lado nem por outro. Perguntado sobre o assunto dos balões chinesas por jornalistas nesta terça, o embaixador Arslanian Neto não deixou espaço para dúvidas: "esse tema não integra a pauta das relações com os Estados Unidos".
Lula, porém, espera sim falar sobre Venezuela e Cuba com Biden. Crítico às sanções americanas aos regimes cubanos e venezuelanos, ele disse aos jornalistas independentes nesta terça já ter tratado da situação da ilha antes com George W. Bush e com Barack Obama. Sob Bolsonaro, o Brasil chegou a aprovar na Organização das Nações Unidas as medidas contra Cuba. Agora, Lula espera que o tema volte com Biden.
"Imagino que a Venezuela também estará na pauta, porque nós vamos discutir o fortalecimento da América do Sul, e o Brasil tem muitas responsabilidades aqui na América do Sul. Nós temos 16 mil quilômetros e meio de fronteiras secas com os países da América do Sul. O Brasil tem o interesse de que a América do Sul esteja em paz. A América do Sul precisa se desenvolver e crescer economicamente", disse Lula.
O presidente brasileiro normalizou as relações com o país vizinho e voltou a reconhecer o governo de Nicolás Maduro como legítimo. Durante o governo Bolsonaro, o Brasil reconhecia Juan Guaidó, líder da oposição venezuelana, como presidente, seguindo o entendimento do governo americano.
Sem aliados confiáveis na região, Biden espera que Lula possa impulsionar Maduro a aceitar a convocação de eleições livres e a mudança de regime. Atualmente, os americanos têm derrubado sanções impostas ao setor petroleiro no país conforme avançam os diálogos entre oposição e situação em encontros na Cidade do México. Lula porém tem defendido interferência internacional mínima nos processos políticos domésticos. É incerto com que tipo de ações os dois líderes poderão concordar.
Por fim, enquanto Biden vislumbra uma grave crise doméstica na fronteira, com a enorme quantidade de imigrantes chegando, Lula deve dizer ao presidente americano que o governo brasileiro não concorda com o modo como milhares de brasileiros têm sido sumariamente deportados, em voos fretados nos quais são levados algemados.
O Itamaraty registra que até mesmo menores de idade brasileiros já foram submetidos a ao menos parte da viagem com algemas nos braços e pernas. O governo Bolsonaro, pressionado por Trump, aceitou condições menos favoráveis para os migrantes indocumentados do Brasil. O governo Lula estuda reverter essas medidas. Embora fosse crítico das políticas migratórias de Trump, Biden usou uma série de expedientes criados pelo republicano para lidar com a chegada em massa de migrantes. Os EUA concentram a maior quantidade de migrantes brasileiros no mundo, com uma comunidade de quase dois milhões de pessoas, entre residentes regulares e irregulares.
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