Análise

Nas entrelinhas — "Lula tem razão: os juros estão exagerados"

O presidente tem razão quando ataca os juros extorsivos praticados pelo BC, mas isso não resolve o problema. Pelo contrário: a forma como está fazendo isso tem uma lógica eleitoral evidente

Luiz Carlos Azedo
postado em 08/02/2023 03:30
 (crédito: Maurenilson Freire)
(crédito: Maurenilson Freire)

"É melhor ser feliz do que ter razão." A frase do poeta Ferreira Gullar se aplica a muitas coisas. Ao motociclista no trânsito, por exemplo. E se aplica também ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, principalmente nessa polêmica sobre os juros e a concentração de renda no Brasil. Realmente, as taxas de juros do Banco Central (BC), com a Selic a 13,75%, são escorchantes (ultrapassam muito a medida justa; abusivas, exorbitantes), ainda mais com uma previsão de que a inflação ficará, neste ano, em 5,5% (Focus). São 8,25% de diferença. Nenhum país do mundo pratica uma taxa de juros real dessa magnitude.

O enriquecimento no Brasil não pode ser atribuída apenas ao talento empresarial e à capacidade de trabalho. Porém, é injusta a generalização da tese de que os empresários não trabalham — a maioria trabalha muito. Entretanto, o rentismo e o patrimonialismo são formas seculares de acumulação de capital no Brasil, a gênese da formação do grande parte do empresariado brasileiro e, digamos também, da elite política do país. A inflação e as altas taxas de juros tornam os ricos mais ricos e os pobres mais pobres no Brasil.

Esse processo explica por que a elite econômica, os ricos, em sua maioria, apoiaram a reeleição de Jair Bolsonaro, mesmo sabendo dos riscos para a nossa democracia. O mesmo fenômeno ocorreu após o golpe militar de 1964, que obteve maciço apoio até da classe média, durante o chamado "milagre econômico", que fez o bolo crescer sem dividi-lo — ao contrário do que fora prometido pelo então ministro da Fazenda, Delfim Netto. A eleição de Lula mostrou um país dividido não apenas ideologicamente, mas também socialmente.

Entretanto, Lula precisa entender que já não vivemos numa sociedade industrial como aquela que se formou em meados do século passado, e que o transformou na maior liderança operária do país. Ele transitou do mundo sindical para a alta política, chegou à Presidência pela terceira vez numa "modernidade líquida", como diria o sociólogo polonês Zygmunt Baumann. A velha estrutura de classes sociais bem definidas, que deu origem à democracia representativa, não existe mais.

A política se organiza por meio dos partidos no plano institucional. Porém, na sociedade o espaço público vem sendo ocupado cada vez mais pelas redes sociais, às vezes clandestinas. Os sindicatos e outras agências da sociedade civil perderam protagonismo nesse mundo novo, marcado por novas relações sociais, econômicas e de produção frágeis, fugazes e maleáveis. Ideias e relações pessoais passam por transformações rápidas e imprevisíveis. Instabilidade financeira, novas tecnologias e mudanças na estrutura produtiva diluíram o mundo que se conhecia até o final do século passado. As ideias de coletividade deram lugar ao individualismo.

Concentração de renda

Voltando a juros altos, inflação e retomada do crescimento. A herança do nosso passado se faz presente. Até 1930, nosso desenvolvimento econômico seguiu o modelo clássico, voltado para o setor exportador. A partir daí, as atividades voltadas para o mercado interno passaram a predominar, em decorrência da crise de 1929 e da II Guerra Mundial, e da manutenção e ampliação da renda interna. Nosso desenvolvimento econômico, particularmente a industrialização, caminhou sobre essas duas pernas.

A inflação brasileira, até então, refletia a política monetária e creditícia, mas passou a ser consequência também dos desajustes estruturais da economia. Depois de 1954, quando o governo federal passou a fazer também grandes investimentos públicos, a inflação foi uma das formas de financiamento da industrialização e se tornou um instrumento de concentração de renda, em favor de empresários, industriais, comerciantes e empreiteiros. Assalariados, trabalhadores rurais e classe média pagaram a conta. Greves operárias, manifestações estudantis e ocupações de terras foram a resposta ao modelo. O desequilíbrio do balanço de pagamentos e o sistema cambial também favoreceram a concentração de renda.

Quando Lula fala que existe uma cultura de juros altos, precisa levar em conta que existe, também, uma memória da inflação inercial, que foi superada pelo Plano Real, mas passa por uma recidiva desde o governo Dilma Rousseff. Por isso, a ideia de se tolerar um pouco mais de inflação para o país se reindustrializar e voltar a crescer é muito perigosa.

Hoje, a inflação está fora de controle. É resultado de uma política de juros baixos (2%) e câmbio alto adotada por Roberto Campos Neto no BC, no começo do governo Bolsonaro, sob orientação de Paulo Guedes, não apenas por causa da pandemia e da guerra na Ucrânia. A alta do dólar favoreceu o setor exportador; a taxa de juros, o rentismo.

A vitória eleitoral de Lula foi uma reação popular a esse modelo, como fora a volta de Getúlio Vargas ao poder, em 1950. O presidente tem razão quando ataca os juros extorsivos praticados pelo BC, mas isso não resolve o problema. Pelo contrário: a forma como está fazendo isso tem uma lógica eleitoral evidente, porém, aperta o nó do conflito distributivo, quando deveria afrouxá-lo.

Nove entre 10 grandes banqueiros discordam da atual política monetária. As fintechs que estão ditando as regras do jogo. Além disso, arma-se uma casa de caboclo para Lula no Congresso, a pretexto de defender o BC. Não basta ter razão para ser feliz.

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