Lisboa — O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desembarca nos Estados Unidos com a missão de recolocar o Brasil entre os principais atores do debate internacional. A viagem será curta, mas, na conversa de sexta-feira entre o brasileiro e o colega norte-americano, Joe Biden, temas de grande relevância estarão na pauta — como os ataques à democracia, o fortalecimento da extrema direita, a guerra entre Rússia e Ucrânia, as tensões norte-americanas com a China e o aquecimento global. Tanto do lado brasileiro quanto dos EUA, a expectativa é de um diálogo franco. Os dois países passaram os últimos dois anos num distanciamento protocolar, com evidentes divergências entre Biden e o ex-presidente Jair Bolsonaro, aliado de primeira hora de Donald Trump.
Na avaliação de Alvaro Zapatel, professor, na Espanha, da IE School of Politics, Economics and Global Affairs, Brasil e EUA terão papel central nas discussões globais sobre democracia e a polarização que se vê no mundo. Os dois foram alvos de movimentos violentos da ultradireita — que atacaram o Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, e os Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro.
Apesar das preocupações com o regime democrático brasileiro, Zapatel vê Lula como um líder capaz não só de estreitar as relações do Brasil com os Estados Unidos, mas de ser um porta-voz de países latinos de esquerda e do Mercosul. A seguir, os principais pontos da entrevista ao Correio.
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O que representa esse encontro entre Lula e Biden?
Reinaugura as relações entre EUA e Brasil numa direção oposta à que foi a relação entre Bolsonaro e Trump. Nesse sentido, o Brasil buscará se reconectar com os EUA num contexto em que Lula tentará reforçar o papel do país como força global e como interlocutor do Mercosul, representando países da região que, ideologicamente, estão mais à esquerda.
Durante o governo Bolsonaro, houve uma proximidade com Trump, que não resultou em ganhos comerciais para o Brasil. Por quê?
O Brasil está intimamente ligado ao Mercosul, um acordo comercial do qual se afastou durante o período de Bolsonaro. Esse distanciamento tirou do Brasil a capacidade de mediar as relações entre os EUA e os países membros do grupo, quadro que, certamente, Lula tentará reverter. Da mesma forma, a administração Trump priorizou o fortalecimento das indústrias nacionais e não lhe faltou espírito protecionista, o que, evidentemente, diminuiu o interesse em expandir os laços comerciais a nível internacional. Portanto, apesar das boas relações entre Trump e Bolsonaro, não se traduziram numa maior troca comercial para o Brasil.
Por que os laços entre as duas maiores democracias das Américas nunca se estreitaram?
O Brasil procura manter uma área de influência na América do Sul e, nesse sentido, tem visto, historicamente, as tentativas dos EUA de entrar na região com algum cuidado. Nessa linha, o Brasil compete com os norte-americanos, por isso procura manter uma relação de equilíbrio geopolítico, na qual se relacionam, mas à distância. Obviamente, ambas as nações têm interesses semelhantes, tanto na necessidade de aprofundar a integração econômica da região quanto de gerar ações conjuntas para combater problemas como o tráfico de droga. Se começarem com esses eixos e cobrirem outras áreas, poderão aumentar a produtividade de uma relação bilateral.
O que o Brasil tem a oferecer aos EUA, e os EUA ao Brasil?
O Brasil tem uma grande oportunidade de ser fiel ao equilíbrio com os países da região mais à esquerda, mas pode ser o interlocutor do qual os EUA precisam num contexto de alta tensão política na América Latina. Os EUA, por seu lado, podem ser de grande ajuda na luta contra o tráfico de droga, um problema que continua a ser de enorme relevância para o Brasil. Isso sem contar as possibilidades comerciais entre os dois países.
A questão ambiental parece ser, neste momento, o tema que mais aproxima os dois países. Por quê?
Na COP27, Brasil e EUA, com Lula e Biden à frente, colocaram especial ênfase na luta contra as alterações climáticas. Certamente, os dois países tenderão a aprofundar, conjuntamente, as ações para mitigar as consequências das emissões de carbono.
Lula voltou a defender uma reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Há interesse dos EUA nessa mudança e haveria um apoio às pretensões do Brasil, que pleiteia um assento?
Não é do interesse dos EUA abrir esse debate, uma vez que poderia gerar oportunidade de outros países se candidatarem ao Conselho de Segurança sem estarem, necessariamente, relacionados com os interesses dos norte-americanos. O Conselho é um clube seleto, ao qual muitos países desejam aderir como membros permanentes. Mas, para aqueles que estão nesse grupo, abrir o espaço para outros países pode gerar consequências geopolíticas irreversíveis e perda de posição estratégica no seio do organismo. Nesse sentido, é possível que os EUA forneçam outras alternativas ao Brasil, sem, necessariamente, concordarem em apoiar uma reforma que envolva a entrada de novos membros permanentes do Conselho.
Brasil e EUA viram suas democracias sob ataque, com atos de vandalismo no coração da República. Por que se chegou a tal ponto?
A polarização política vivida nos EUA e no Brasil é consequência de um fenômeno global, fruto do ressurgimento de posições extremistas da esquerda e da direita, que, por meio da desinformação e da "pós-verdade", procuram colocar na agenda questões relacionadas a seus interesses. Nesse contexto, as democracias têm como encargo, talvez, em desvantagem, proteger o Estado de direito contra aqueles que utilizam todos os instrumentos disponíveis para boicotar as instituições constitucionalmente constituídas. No entanto, é mais provável que os EUA saiam melhor de tais controvérsias do que o Brasil, dada a vulnerabilidade da sua democracia nos últimos tempos.
A extrema direita tende a ganhar mais espaço na América Latina, depois de se enraizar nos dois maiores países das Américas?
A extrema direita tem maior visibilidade a nível regional desde o surgimento de Trump e Bolsonaro. Da mesma forma, a extrema esquerda tem vindo a ganhar espaço em países como o Peru, que, sem ser um poder na região, passou a ter momentos de elevada volatilidade política devido a mobilizações que têm, entre outros intervenientes, representantes da extrema esquerda. Em todos os casos, o resultado é semelhante: a polarização política, que aumenta a volatilidade e a incerteza.
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Interessa para os EUA ter um Brasil mais ativo no contexto internacional?
Ao contrário de Trump, que viu os EUA de uma forma insular, sem interesse aparente no estrangeiro, a administração Biden está tentando levar o país para a esfera estratégica de tomada de decisão sobre diferentes questões de relevância internacional: da guerra na Ucrânia à luta contra as alterações climáticas. Para isso, requer aliados que possam apoiar tais posições na região, e prefere ter o Brasil próximo.
A relação entre os EUA e a América Latina vai mudar?
Os EUA tentaram se aproximar da América Latina no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000. O ataque terrorista do 11 de setembro reconfigurou o tabuleiro geopolítico global e, com ele, os interesses dos norte-americanos se deslocaram para o Oriente Médio e, em geral, na luta contra o terrorismo jihadista. Hoje, 20 anos depois, os EUA voltam a olhar com interesse para uma região que tem sido seduzida por rivais estratégicos, como a China, e que, por sua vez, permitiu que o sentimento anti-americano de países como a Venezuela e Cuba crescesse, e que foi exportado para a região. Os EUA têm de levar em consideração essa realidade e abordá-la, a fim de recuperar a proeminência nessa parte do mundo.
Como fica a relação do Brasil com a China, maior parceiro comercial, com Lula se aproximando dos EUA?
O Brasil tem a vantagem estratégica de se projetar como uma potência equilibrada na região, que, em busca de um diálogo horizontal com as duas mega-potências, tentará se colocar entre elas. Penso que os EUA não veriam como estratégico apoiar o Brasil na intenção de entrar para o Conselho da ONU como membro permanente, uma vez que o governo brasileiro também procuraria equilibrar os seus interesses com os da China. Da mesma forma, a China tem a oportunidade de manter a posição de vantagem que acumulou na América Latina e de aprofundar as relações bilaterais com o Brasil, algo que fez há várias décadas de olho em áreas como as de energia e infraestrutura.
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