Apesar de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter garantido que o governo investirá na transversalidade de algumas questões — como meio ambiente, direitos humanos e ações públicas para a inserção dos pobres, comunidade LGBTQIA e negros —, para a ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, o momento é de pensar em projetos concretos. Para ela, as ações têm de começar a sair do papel exatamente por serem factíveis de serem colocadas em prática.
"Fiz essa fala na reunião ministerial. Todo mundo falava de transversalidade. Eu disse: a gente tem que pensar passos concretos. Não basta falar 'vamos trabalhar transversalmente' sem que a gente tenha um primeiro passo", cobrou, acrescentando que Lula deixou os ministros "muito à vontade" para construir o diálogo entre as pastas.
Uma dessas iniciativas que começam a se concretizar, segundo a ministra, é um banco de currículos para profissionais transsexuais negros para que tenham oportunidades no mercado de trabalho. Anielle lembrou de um desabafo feito pela ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, que relatou a "dificuldade" de encontrar profissionais femininas da área. Foi ajudada pelo grupo Elas no Orçamento, que forneceu uma lista de profissionais para cargos no Ministério da Fazenda. "Quando veio a solicitação para essa área, filtramos e entregamos nomes de mulheres negras que compunham essa lista", afirmou. Anielle destacou que é preciso deixar claro para a sociedade que "as pessoas negras estão qualificadas nas mais diversas áreas".
A entrevista da ministra ao CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília — aconteceu no mesmo dia em que houve dois episódios importantes e que têm conexão direta com ela: a morte de Gloria Maria, uma jornalista negra que fez escola na reportagem de vídeo, e a prisão do ex-deputado Daniel Silveira — que quebrou uma placa de rua em homenagem à irmã de Anielle, a vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018.
A ministra, que é formada em jornalismo, lembrou que Gloria foi uma desbravadora e uma inspiração. "Fiz uma entrevista em uma emissora renomada do Rio e me disseram que não tinha rosto para bancada. Quando via a Glória Maria, pensava: 'Pelo menos ela segue inspirando outras mulheres'", lembrou, carinhosamente.
Sobre o ex-deputado, tristes e dolorosas recordações: "Ele ofendeu diversas pessoas da família na internet. Tenho um verdadeiro repúdio ao que ele representa. Em 2018, quando o ex-presidente foi eleito, fui cuspida na cara em um shopping, no Rio de Janeiro, com a minha filha de dois anos no colo. A quebra da placa foi uma coisa muito simbólica. Não só ele, como o irmão dele pendurou metade da placa no próprio gabinete. A gente pediu para tirar, a gente tentava falar, mas nunca tinha o nível mínimo de respeito", lamentou.
O ódio disseminado pelo bolsonarismo fez com que Anielle tivesse medo até mesmo de homenagear a irmã, ao usar camisetas com o rosto de Marielle. "Eu pensava: 'Gente, não é possível, é a minha irmã. Como eu vou ter medo?", afirmou. A seguir, os principais trechos da entrevista.
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A senhora, como jornalista e mulher negra, de que forma recebeu a morte da jornalista Gloria Maria?
A gente recebe, não só nós, mulheres negras, mas o país inteiro, com muita tristeza. Me lembro perfeitamente da minha formatura como jornalista e, logo após, fiz uma entrevista numa emissora bem renomada, no Rio de Janeiro, e me disseram que eu não tinha rosto para a bancada. Quando eu via a Glória Maria, pensava: 'Pelo menos ela segue inspirando tantas mulheres'. Para além dela e para além de tudo, é o que possibilita que eu e você, por exemplo, estejamos aqui sentadas, hoje. É com tristeza, mas a gente tem que manter esse legado dela vivo.
Inclusive, manter o legado da Glória vivo é parte do trabalho da senhora. Capacitar, promover, dar oportunidade a trabalhadores e trabalhadoras negras que lutam para acessar o mercado de trabalho.
Com certeza. Cada vez que ela aparecia com uma pauta, com um jeito próprio. As mulheres negras têm uma maneira de falar, de pensar, e a gente precisa naturalizar isso — no jornalismo, na política, em qualquer lugar. A gente tem nosso jeito de se reconhecer. Existe uma autora negra, a Vilma Piedade, que fala sobre sororidade. Mas também existe, por exemplo, uma Bell Hooks, que fala sobre o amor das mulheres negras. Toda vez que a gente encontra, e se encontra, acho que passa um pouco sobre isso, que é de olhar na outra e entender o que a outra passa — e também se reconhecer fisicamente, culturalmente, visualmente. Nosso trabalho faz parte disso também.
Como está o banco de currículo para pessoas negras, trans e travestis. Será permanente? Como será essa iniciativa
Teve uma primeira reunião, quando conversamos com as meninas da organização "Elas no Orçamento" — são meninas incríveis. Tinha uma lista criada por elas, e quando veio a solicitação para essa área, filtramos e entregamos, por exemplo, nomes de mulheres negras que compunham essa essa lista. Em paralelo a isso, o ministro Alexandre Padilha tinha nos pedido uma lista de indicações também na área de comunicação. Fizemos (uma lista) direcionada às pessoas trans e travestis, agora, no Dia da Visibilidade. Mas quando o ministério abriu, especificamente, para as pessoas negras, nossa ideia era trazer para o país inteiro que as pessoas negras estão qualificadas nas mais diversas áreas. Como nós levamos, inclusive, para Marcelo Freixo, presidente da Embratur (Empresa Brasileira de Turismo). Então, a cada pessoa que pede, a gente tem entrega. A gente pretende seguir fazendo para quem solicitar, a gente estará pronta para atender.
A transversalidade do ministério, esse trabalho com outras pastas, vem sendo uma marca do governo Lula. Qual é o trabalho que está sendo desenvolvido com mais intensidade? Qual é a prioridade neste momento?
Toda vez que essa palavra, transversalidade, surge, vem com outras palavras ao redor dela. Com responsabilidade, com equidade de gênero, com paridade racial — a gente precisa, também, falar muito sobre isso. Falei disso, inclusive, na reunião ministerial. Todo mundo falava de transversalidade e falei: 'A gente tem que pensar passos concretos'. Porque a população negra tem muitas urgências e não basta falar: 'Ah!, vamos trabalhar transversalmente', mas sem que a gente tenha um primeiro passo. A gente tem debatido cinco pontos cruciais. Primeiro, a fome: tem mais de 30 milhões de pessoas no país passando fome. A gente tem uma reunião agendada com o ministro Wellington Dias (do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome do Brasil) para debater, porque falar de educação e falar de todas as outras questões com fome não dá. Tivemos uma primeira reunião sobre a saúde da negra, que está extremamente afetada para além da falta de acesso. A gente esteve com a ministra Nísia Trindade (Saúde) e, hoje, a gente tem um grupo de trabalho especificamente para pensar a saúde da população negra que perpassa desde mortalidade materna até a saúde mental — teve um aumento enorme de suicídios e depressão da população negra. Estivemos também com o ministro Camilo Santana (Educação) para debater todas as questões que envolvem Lei de Cotas e tantas outras coisas relacionadas à educação, que vamos criar para os próximos dias. Para encerrar, o enfrentamento do genocídio da população negra, que é algo também em conjunto com o Ministério da Justiça. Estivemos com o secretário Marivaldo (Pereira, de Acesso à Justiça), há duas semanas, debatendo diversos assuntos para além de reconhecimento racial. Tem a questão quilombola — tratarmos da intolerância religiosa com as religiões matriz africanas. Estive na Praça dos Orixás (ontem foi Dia de Iemanjá) e foi importante estarmos presentes. É o que a gente tá tentando construir.
Ministra, o racismo é também ambiental. O Brasil vê, hoje, chocado, a situação dos ianomâmis. Onde entra sua pasta nessa transversalidade?
O que está acontecendo com os ianomâmis é uma tragédia humanitária. Me coloquei à disposição da ministra Sônia Guajajara (dos Povos Indígenas) para que a gente possa pensar e construir. Por quantos anos a gente terá que enterrar corpos vítimas não só do racismo ambiental, mas por tantas outras questões, como fome e falta de emprego?
O ex-deputado Daniel Silveira foi preso, mais cedo, pela Polícia Federal. De que forma a senhora analisa isso?
Ele precisa responder judicialmente por tudo que foi feito e falado. Sempre falei, desde que mataram a Marielle, em 2018, que tinha o sonho de dialogar com pessoas que pensassem diferente de mim. Falava e sigo falando isso para pessoas que respeitam nossos posicionamentos, valores e crenças. Mas prefiro não dialogar com pessoas que ultrapassem essa linha. Por exemplo: em 2018, quando o ex-presidente (Jair Bolsonaro) foi eleito, fui cuspida na cara em um shopping, no Rio de Janeiro, com minha filha de dois anos no colo. Ele (Silveira) ofendeu diversas pessoas da família na internet, tenho um verdadeiro repúdio por tudo que ele representa. Ele precisa responder pelos atos e espero que responda.
Como a senhora analisa a disseminação do discurso do ódio?
Me lembro que andei, uma época, com medo de usar a foto da Marielle, no Rio. Pensava: 'Não é possível, é minha irmã'. Isso foi causado pela quebra da placa (por Daniel Silveira). Não só ele, mas o irmão dele também pendurou a metade da placa no próprio gabinete. A gente pediu para tirar, a gente tentava, mas nunca achava um mínimo de respeito. Quando mataram a Marielle, às 21h30, às 23h30 recebi a primeira fake news da minha irmã — fotos dizendo que ela era envolvida com o tráfico. Recebi a foto da minha irmã desfigurada, com cinco tiros na cabeça. O nível de crueldade foi tanto que tirei tanto minha sobrinha quanto a minha mãe das redes sociais por um bom tempo.
Todos sabemos que a juventude negra é perseguida e morta. Como pôr fim a essa tragédia?
É inadmissível que a gente ainda seja o país que mata um jovem negro a cada 23 minutos. A gente teve, semana passada, uma criança (Rafaelly da Rocha Vieira) que tomou um tiro de fuzil brincando, na Baixada Fluminense. Então, a cada dia que passa a gente segue acordando com notícias como essa, e é muito duro. É inadmissível que a gente siga assim neste país de uma população preta tão potente, que é a maior parte da população brasileira. Mas a gente segue sendo atacada e morta.
Qual a avaliação que a senhora faz da nova Lei da Injúria Racial?
É um avanço. Ficamos oito anos esperando que isso acontecesse. Foi muito simbólico (que o presidente Lula) ter assinado na minha posse e na da Sônia. A gente tem visto um aumento significativo de casos que, agora, estão sendo filmados. A lei também tenta trazer uma coisa que não é a regra, que o racismo tinha que ser uma exceção. É muito triste a gente ainda passar por isso, ter que explicar. E acho que pior ainda ficar comprovado que isso é estrutural, institucional, e que a gente não pode continuar vivendo assim. Não é mimimi. É uma lei importante, que impõe pena de dois a cinco anos.
A Lei de Cotas foi muito atacada e menosprezada nos últimos quatro anos...
É a maior política da ação afirmativa reparatória neste país. A gente não pode negar os números, os dados. Sou cotista da UERJ, sempre falo isso com muito orgulho. Entrei em terceiro lugar para cursar inglês e literatura, em 2012. Sempre falei ao presidente Lula o quanto sou grata, porque fiz parte dessa política. É muito importante que a gente fortaleça, que a gente siga. A Lei de Cotas precisa permanecer. Lembro quando ganhei meus primeiros R$ 300, algo que me possibilitou pegar um ônibus, tirar uma xerox. Além de fortalecer, também fazer com que a permanência seja eficaz e atualizada para nossas universidades e estudantes.
*Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi
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