Jornal Correio Braziliense

Indígenas

Ministério aponta 22 casos de omissão da gestão Bolsonaro com ianomâmis

Comitiva do Ministério está em Roraima para apurar crise em comunidades indígenas e detectou 22 suspeitas de omissão do governo Bolsonaro

O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) divulgou, nesta segunda-feira (30/1), o relatório preliminar sobre a crise nas Terras Indígenas Ianomâmis. De acordo com o levantamento, foram detectados 22 casos de suspeita de omissão do governo Bolsonaro e do antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que teria agido com descaso frente aos processos encaminhados para a pasta.

Segundo o relatório, foram identificados sete processos administrativos de alerta sobre as violências sofridas pelo povo ianomâmi entre os anos de 2019 e 2022 e envio de recomendações de entidades nacionais e internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Ministério Público Federal (MPF). Mesmo diante dos avisos, o MMFDH, sob gestão da ministra Damares Alves, “se eximiu de responsabilidade”.

Além disso, dez casos que configuram descaso diante de denúncias feitas sobre a situação das comunidades ianomâmi e cinco de ausência de visitas ao território e oitivas foram identificados pela comitiva do Ministério dos Direitos Humanos que acompanha a crise sanitária nas terras indígenas e estão em Roraima desde domingo (29/1) para fazer diagnóstico das violações de direitos humanos contra os indígenas.

O levantamento divulgado pelo MDHC foi encaminhado, também nesta segunda-feira (30/1) ao Ministério da Justiça e Segurança Pública a fim de que os fatos sejam investigados. A iniciativa também implicará na responsabilização de agentes que promoveram ações deliberadas contra a dignidade humana na gestão passada.

“A deturpação do uso da máquina pública, utilizada apenas para propagar discursos de ódio, fez com que o governo anterior ignorasse a morte de um Yanomami em 9 de abril de 2020, vítima da pandemia de Covid-19. Ao invés de investigar as condições sanitárias e de contaminação dos povos originários, reduziu o problema a uma questão que deveria ser resolvida apenas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), evidenciando a falta de empatia e sensibilidade com os indígenas”, revelou o Ministério dos Direitos Humanos por meio de nota.

 

Reprodução/MDHC - MDHC divulga relatório preliminar das omissões do extinto MMFDH diante das violações de direitos humanos dos povos indígenas

Principais omissões destacadas pelo Ministério

Dos 22 casos identificados pelo Ministério dos Direito Humanos e Cidadania, cerca de oito foram destacados no relatório. Em relação aos episódios em que o governo Bolsonaro rejeitou recomendações de órgãos e entidades nacionais e internacionais, a pasta ressaltou que a gestão anterior não participou da audiência da Medida Cautelar 563-20, que tramita na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e tratou as denúncias relacionadas aos ianomâmis como “críticas de deputados oposicionistas”.

Além disso, o governo Bolsonaro teria sugerido à CIDH que o projeto de lei que defende a exploração de minérios, petróleo e recursos hídricos em terras indígenas, era positivo para a área e propôs a legalização da atividade de garimpo. O PL está parado na Câmara dos Deputados após a polêmica que gerou. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), prometeu a montagem de um grupo de trabalho, mas nunca se concretizou.

Em relação aos descasos diante de denúncias sobre a crise sanitária em terras ianomâmis, o relatório destacou que o Ministério comandados por Damares ignorou a denúncia de primeira morte por Covid-19 entre os ianomâmi; sugeriu barrar a obrigação do fornecimento de água e equipamentos básicos para as comunidades durante a pandemia; negou planejamento assistencial em favor de crianças e adolescentes indígenas; negou assistência humanitária ao governador do Estado de Roraima; suspendeu a ordem de policiamento ostensivo em favor do Sr. Davi Kopenawa — integrante do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da pasta — e encerrou processo instaurado para apurar caso envolvendo crianças na comunidade Macuxi Yano.

O documento revelou ainda que nenhuma visita foi feita às comunidades ianomâmi durante o governo Bolsonaro. Viagens à Roraima sob a justificativa de combate ao infanticídio realizadas pela gestão anterior foram identificadas pelo atual Ministério, mas nenhuma delas foi em territórios indígenas isolados. “Se por um lado, o discurso era defesa da vida; por outro, na prática, o que se via era total descaso com ela”, afirmou o MDHC.

Reprodução/Urihi Associação Yanomami - Imagens de indivíduos esqueléticos dão base à investigação, que pode enquadrar agentes públicos na perpetração de crime para dizimar um grupo
Reprodução / URIHI - ASSOCIAÇÃO YANOMAMI - População ianomâmi sofre com fome e várias doenças provocadas por invasores
Reprodução / URIHI - ASSOCIAÇÃO YANOMAMI - Indios YANOMAMI - Imagens feitas por profissionais de saúde nas aldeias ianomamis
Reprodução/URIHI - Associação Yanomami - A tragédia dos ianomâmis: governo anterior deixou de tomar medidas de socorro aos indígenas
sumaum/Divulgação - Governo prometeu agir sobre o caso
sumaum/Divulgação - Fome- Imagens feitas por profissionais de saúde nas aldeias ianomamis

Veja as omissões detectadas pelo MDHC

Rejeição a recomendações de órgãos e entidades nacionais e internacionais

  • MMFDH se isentou de atuação no acompanhamento das comunidades indígenas no início da pandemia, respondendo ao MPF que não participa do planejamento e execução de políticas públicas direcionadas ao atendimento emergencial dessas comunidades e redirecionando o caso à FUNAI e à SESAI.
  • Mesmo após os sucessivos alertas ao MMFDH para os prejuízos da invasão garimpeira à saúde, segurança e integridade física das comunidades ianomâmi e iekwana em Medidas Cautelares junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a pasta se ausentou em audiência, bem como ignorou o tema do garimpo e justificou sua atuação em prol das comunidades pura e simplesmente pela entrega de cestas básicas e EPIs, resumindo sua atuação às demandas pandêmicas, e, mesmo assim, sem apresentar qualquer resultado de entrega às comunidades.
  • Desconhecendo a situação sobre a qual a CIDH estava preocupada, de invasão do território do povo Yanomami por garimpeiros nos estados de Roraima e Amazonas, para responder à CIDH o MMFDH oficiou outros órgãos do governo e o MPF solicitando informações atualizadas, demonstrando sua ausência de atuação no tema. Como fator agravante, apresentou positivamente à CIDH o conteúdo do Projeto de Lei nº 191/2020, que propunha a legalização da atividade de garimpo.
  • Diante do pedido do movimento Coalizão Brasil Clima, Floresta e Agricultura para implementação do Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas, novamente, o MMFDH ignorou o tema e respondeu ao movimento sobre suas ações de fornecimento de cestas básicas.
    Em resposta a mais uma entidade internacional, o MMFDH ignorou as recomendações sobre a proteção da comunidade ianomâmi e responde o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU informando o envio de cestas básicas.
  • Novamente, o MMFDH ignorou as recomendações sobre a proteção da comunidade ianomâmi e, abstendo-se de responsabilidade, respondeu à Carta de Representante Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) que áreas de saúde e segurança não estão relacionadas a atuação direta da pasta.

Descaso diante de denúncias feitas sobre a situação das comunidades ianomâmi

  • MMFDH ignorou a primeira morte de covid entre os ianomâmi e respondeu que, apesar de ser atribuição da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) a "articulação e a promoção da igualdade racial", não é responsável pela execução das questões de saúde. Isentou-se do caso e informou que a matéria é de competência da SESAI e da FUNAI.
  • Na contramão das políticas de proteção das comunidades indígenas, o MMFDH sugeriu o veto à obrigação da União, estados e municípios fornecerem itens como água potável, materiais de limpeza, higiene e desinfecção; leitos de UTI; ventiladores pulmonares; e materiais informativos sobre a covid-19.
  • Intimado sobre decisão liminar que concedia a aquisição emergencial de alimentos para os ianomâmi, o MMFDH se eximiu de responsabilidade e informou caber ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), ao Ministério da Cidadania e ao SUS a implantação de tais políticas.
  • Apesar do MMFDH ter proposto ao Ministério da Justiça criar uma comissão com a participação da Secretaria Nacional de Proteção Global e da SNPIR, para acompanhamento das ações de combate ao garimpo ilegal em território ianomâmi, e de ter o Ministério da Justiça manifestado acordo com a criação da comissão, não foram feitas novas movimentações dando início às atividades propostas. Não suficiente, o MMFDH elencou onze ofícios expedidos pedindo informação sobre a situação dos ianomâmi, a fim de informar à Defensoria Pública da União (DPU) que estava atuando, quando, na verdade, não há registro de ações promovidas a partir das informações reunidas, não passando de ação protocolar.
  • Intimado para contestar a Ação Civil Pública sobre o resgate cultural e proteção social das populações ianomâmi, o MMFDH se eximiu de responsabilidade e respondeu que, embora tenha competências para atuação com relação a medidas de resgate cultural, compete à FUNAI a atuação voltada para proteção e preservação cultural indígena.
  • Diante do pedido do governador do Estado de Roraima, que havia declarado situação de emergência em vários municípios e buscava ajuda na execução das ações de socorro e assistência humanitária à população atingida, especialmente a comunidade ianom mi, o MMFDH se eximiu de responsabilidade e encaminhou a demanda ao Ministério da Defesa e à FUNAI. Após o MD ter informado que a solicitação deveria ser direcionada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, e a FUNAI ter informado a entrega de cestas básicas, a questão foi encaminhada ao MDR e nada mais foi feito.
  • O MMFDH suspendeu,em 2022, a ordem de policiamento ostensivo em prol do Sr. Davi Kopenawa, nas proximidades de sua residência e locais de trabalho, mesmo diante das inúmeras denúncias de conflitos com garimpeiros nas terras indígenas ianomâmi. A ordem só foi retomada no final de novembro de 2022, após dois homens terem tentado ingressar na sede da Hutukara Associação Yanomami, expondo a vida do Sr. Davi Kopenawa e outros indígenas.
  • MMFDH, apesar de indicar o nome do secretário adjunto para participar da reunião do Ministério da Justiça sobre o cumprimento de decisão judicial de restabelecimento e a manutenção das Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs), de fiscalização e repressão ao garimpo ilegal, extrusão de infratores ambientais, implementação e aumento de barreiras sanitárias, e questões relacionadas à segurança alimentar das populações indígenas que habitam na Terra Indígena Yanomami, não instaurou nenhum procedimento de acompanhamento da demanda.
  • Após a Deputada Federal Joenia Wapichana enviar do MMFDH o ofício nº 100/2021/GAB, informando sobre violações de direitos humanos envolvendo crianças na comunidade Macuxi Yano, ao tempo em que solicita apoio da Pasta para diligência in loco, o MMFDH encerrou o processo administrativo após oficiar o Governador do Estado de Roraima solicitando o status sobre a apuração do caso e registrar a demanda na Central de Atendimento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Apesar de ter sido iniciada articulação para o agendamento de uma oitiva no território, alegou que não foi possível conciliar a disponibilidade de agenda da Ministra Damares Alves e nada mais foi feito. O processo foi concluído sem sequer ter sido a resposta do governador juntada.
  • Desconsiderando a importância da participação da representante da pasta em audiência que daria oportunidade a uma discussão de medidas em favor de mulheres e crianças ianomâmi junto à Câmara dos Deputados, a tarefa foi secundarizada, tendo sido indicados para participar em nome da Ministra o Secretário Nacional adjunto, Esequiel Roque e a Coordenadora-Geral Dayanna Fagundes, da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Ausência de visitas ao território e oitivas das comunidades ianomâmi

  • Primeira ida do MMFDH (por representantes da SNPIR) à Roraima, foi, sob escusa de participar do 1º Simpósio Roraimense de Saúde Indígena, para realização de Reunião com 1º Batalhão de Infantaria de Selva e cumprimento da determinação da Ministra no sentido de avaliar a possibilidade de implementação do Projeto Ulu, de assistência voltada especificamente ao enfrentamento do infanticídio indígena, razão pela qual se visitou a Aldeia Sanuma localizada na Terra Indígena Yanomami.
  • Em missão para representar o MMFDH na cerimônia de entrega de máscaras doadas pela Embaixada da Venezuela, novamente, não foi feita qualquer visita ou oitiva dos ianomâmi, com agenda prevendo apenas reunião com a FUNAI e Associação Indigenista para tratar das comunidades ianomâmi.
  • Em missão para tratar da articulação em prol da Criança Indígena Vulnerável, sobre crianças com deficiência e sua relação com o abandono e o infanticídio, mesmo em meio à conjuntura de violência experienciada pelas comunidades ianomâmi, não foi feita qualquer visita ao território ou oitiva.
    Em missão para cerimônia de entrega de duas vans dos Direitos à Defensoria Pública do Estado de Roraima, a Ministra cumpriu agenda sem realizar qualquer visita ao território ianomâmi.
  • Sem qualquer menção ao estado calamitoso vivido pelas comunidades ianomâmi, mas tão somente dizendo que o foco das ações seriam essas comunidades, o MMFDH organizou visita à Roraima de comitiva de ministérios de estado às comunidades indígenas públicos-alvo do Plano de Ação de Defesa das Garantias de Direitos das Crianças e Jovens Indígenas. Em momento algum, contudo, houve visita ao território ou oitiva das comunidades